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quinta-feira, 9 de maio de 2024

Além do Inferno de Sartre: A Busca por Relações que Protegem e Tratam

A célebre frase de Jean-Paul Sartre, “O inferno são os outros”, captura a essência da complexa dinâmica das relações humanas e seu impacto na saúde mental, uma temática cada vez mais discutida e valorizada na sociedade contemporânea. Embora frequentemente vista como uma perspectiva pessimista sobre as interações sociais, essa máxima sublinha a importante influência das relações em nossa psique. Exemplos disso são evidentes nas obras “Quincas Borba”, de Machado de Assis, e “Angústia”, de Graciliano Ramos, onde relações tóxicas e manipuladoras desencadeiam um declínio na saúde mental, criando um ‘inferno’ pessoal. Contudo, a saúde mental enfrenta dificuldades práticas, desde a neglig&ec irc;ncia da formação emocional iniciando na infância até o acesso limitado a cuidados profissionais. Porém, é essencial reconhecer o potencial salutar das relações saudáveis, do apoio emocional e da compreensão mútua, que podem transformar o ‘inferno’ de Sartre em um percurso de reflexão e crescimento pessoal, mostrando como nossas interações sociais moldam profundamente nosso bem-estar mental.

Em “Quincas Borba”, de Machado de Assis, a trajetória de Rubião, o herdeiro de uma grande fortuna deixada por Quincas Borba com a condição de cuidar de seu cão homônimo, é um exemplo vívido das consequências de relações danosas e manipuladoras. Ao longo do romance, Rubião é habilmente explorado pelo casal Sofia e Cristiano Palha. Eles o envolvem em uma teia de falsas amizades e lisonjas, aproveitando-se de sua ingenuidade e riqueza. O casal Palha orquestra uma série de ações predatórias, como encorajar Rubião a ter gastos extravagante e descontroladamente, além de manipulá-lo emocionalmente, especialmente através da sedução e da falsa camaradagem. Esse comportamento manipulador e exploratório do casal Palha &e acute; fundamental na progressiva deterioração mental de Rubião, que culmina em sua ilusão de ser o imperador francês Luís Napoleão. Este exemplo ilustra vividamente como interações tóxicas podem levar uma pessoa a um estado de profunda desconexão com a realidade.

Em “Angústia”, de Graciliano Ramos, acompanhamos o colapso emocional de Luís, um personagem profundamente marcado por traumas e relações falhas. Após o término de seu noivado com Marina, que se compromete com Julião Tavares, Luís mergulha em uma espiral de angústia e obsessão. A narrativa se aprofunda em suas memórias de uma infância marcada pela ausência de afeto e diversas frustrações, que contribuem para sua visão desencantada da vida e falta de perspectiva.

A deterioração emocional de Luís é intensificada pela constante comparação de si mesmo com Julião Tavares, percebido como mais bem-sucedido e carismático. Essa comparação alimenta um sentimento de inadequação e inferioridade em Luís. A traição de Marina e o relacionamento dela com Julião agem como catalisadores para que Luís reviva suas inseguranças e traumas passados, exacerbando sua angústia.

As obsessões de Luís são detalhadas na narrativa através de seus comportamentos autodestrutivos e pensamentos intrusivos, como o seguimento constante de Marina e Julião, e as fantasias sobre vingança e violência. Esses pensamentos obsessivos culminam no ato impulsivo de assassinar Julião Tavares, um crime passional que serve como um escape temporário para seu sofrimento interno.

Após o crime, o estado mental de Luís deteriora ainda mais. Ele é consumido pela paranoia e pelo medo de ser descoberto, acompanhado de um profundo arrependimento e desespero. Esses elementos ilustram o percurso emocional fúnebre de Luís através de um labirinto de traumas reprimidos e relações falhas, culminando em uma profunda crise de saúde mental. “Angústia” de Graciliano Ramos, portanto, não apenas narra a história de um crime passional, mas também oferece uma exploração vívida do impacto devastador que as relações traumáticas e a angústia podem ter sobre a psique humana. Aliás, a própria estrutura física do romance é um labirinto sem saída.

Por outro lado, pela literatura cientifica, a teoria da aprendizagem social de Albert Bandura e as ideias de Sigmund Freud em “Psicologia das Massas e Análise do Eu” são cruciais para compreender como as relações sociais podem proteger, tratar ou adoecer nossa psique.

andura, com sua teoria, destaca a importância do aprendizado observacional, mostrando que as pessoas aprendem e adaptam comportamentos ao observar os outros em seu entorno. Por exemplo, se uma criança observa um comportamento agressivo sendo recompensado, ela pode aprender a adotar comportamentos semelhantes. Da mesma forma, ver comportamentos positivos sendo reforçados pode levar à adoção de tais comportamentos.

Já em Freud, nas suas discussões sobre a psicologia das massas, explora como a identidade individual pode ser influenciada pela dinâmica de grupo. Ele sugere que, em um coletivo, os indivíduos podem adotar crenças e comportamentos que diferem de suas normas pessoais, muitas vezes subjugando suas próprias identidades para se encaixar no grupo. Isso pode levar a um estado de dependência ou alienação, onde a identidade e o bem-estar mental de um indivíduo estão intrinsecamente ligados à dinâmica do grupo.

Esses princípios ilustram a importância vital das interações sociais no tratamento ou adoecimento de nossa saúde mental. Um ambiente social positivo e construtivo pode promover o aprendizado de comportamentos saudáveis, apoio emocional e desenvolvimento de identidade, enquanto um ambiente negativo pode levar à adoção de comportamentos prejudiciais, alienação e deterioração da saúde mental. A famosa metáfora de Heráclito sobre o rio, que sugere que ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, ressalta essa constante mudança e transformação, mostrando como cada relação e experiência nos molda de maneira única, impactando diretamente nossa saúde mental.

Assim, a saúde mental não é algo que possa ser plenamente tratado apenas com medicamentos, especialmente quando os problemas provêm de interações sociais doentias, seja em âmbito individual ou grupal. Como demonstrado nas histórias de Rubião e Luís, relações tóxicas e traumáticas podem causar um profundo declínio na saúde mental. Embora os medicamentos possam aliviar certos sintomas, eles não têm a capacidade de alterar ou curar as dinâmicas sociais subjacentes que contribuem para o sofrimento mental.

Uma abordagem mais holística é necessária para lidar com essas questões. Isso inclui desenvolver habilidades de comunicação eficaz, estabelecer limites saudáveis e buscar entender melhor a si mesmo e aos outros. A terapia, por exemplo, pode oferecer um espaço seguro para explorar as raízes de problemas relacionais e desenvolver estratégias para enfrentá-los. Além disso, o envolvimento em grupos de apoio ou comunidades que promovem a compreensão e a aceitação pode ser extremamente benéfico.

A participação em atividades que promovam o bem-estar mental, como mindfulness, exercícios físicos e hobbies que trazem alegria, também são fundamentais. Essas atividades não só proporcionam alívio do estresse, mas também ajudam na construção de uma estrutura mental mais resiliente.

Portanto, é crucial reconhecer que as interações sociais têm um impacto significativo em nossa saúde mental. Devemos nos esforçar para cultivar relacionamentos saudáveis e procurar apoio quando necessário, lembrando que cada relação e experiência que vivenciamos nos molda e influencia nossa estrutura mental e emocional. Em última análise, o caminho para uma saúde mental funcional  envolve um equilíbrio entre o autocuidado, a gestão de relacionamentos e, quando necessário, a intervenção clínica apropriada.

Autora:

Maria Ramim
Neuropsicóloga e Neurorreabilitadora de lesões e transtornos neurológicos e neuropsiquiátricos

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