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sexta-feira, 26 de abril de 2024

“Você”

Por menos de um minuto, acabei perdendo o ônibus com destino a Itatiba, e teria agora que amargar duas horas de espera na rodoviária. Não estivesse tão frio iria dar uma volta na cidade, mas preferi comprar um jornal e sentar-me no espaço aonde havia menos pessoas. Mal iniciei a leitura um garotinho sentou-se ao meu lado, perguntando-me se não gostaria de comprar seu cartão telefônico. Respondi que não. Ele voltou a insistir, mas disse-lhe que possuía um e raramente utilizava cartões. O caso era sério: disse-me que seu cartão havia se quebrado e agora já não tinha mais utilidade para ele. Pilantrinha!!

O termo técnico era: “você perdeu seu cartão”. Propôs-me então uma troca pura e simples: meu cartão pelo dele. Pilantra!! Disse que não e o danadinho foi embora. Voltei à leitura. Novamente outra interrupção com uma garotinha ainda mais jovem que se sentou no mesmo lugar com um enorme copo de refrigerante e um lanche.

Pediu-me para segurar o copo, pois não queria derrubar nada na roupa. Fazer o que… Segurei. E fui alternando o copo e o sanduíche que aparentemente não teriam fim. Onde estariam os pais dessas crianças?! Demorou mas pude, enfim, reabrir meu jornal. Poucos minutos depois ambos voltaram, sentando-se cada um de um lado.

A (triste) conversa girava em torno de dúvidas (cruéis, eu diria) como o porquê das casas serem “grudadinhas” umas nas outras e se os peixes também tinham casinha e como sabiam (como?!) se era hora do almoço. A leitura estava difícil e dela desisti de vez quando duas pequenas (e geladas!) mãozinhas cobriram meus olhos para que eu dissesse quem era. E como eu saberia?! Respondi que era “você” e dei o caso por encerrado. Ela não, e o gesto se repetiria dezenas de vezes, sempre acompanhado de um gostoso sorriso.

Aproveitei um dos momentos de olhos descobertos e conferi as horas. Faltavam quinze minutos para ir embora e já começava a me preocupar com as crianças pela ausência dos pais ou responsáveis. Notei então que o menino adormecera encostado em mim e logo a garotinha ajeitava a cabeça em minha perna. Impossível não pensar quem seriam; o que seria delas, e também o porquê de terem se instalado à minha volta. Venceram minha irritação com a espera do ônibus, minha indiferença para com elas, e me mostraram merecerem mais atenção que a leitura do jornal. E não me importei em pagar as gominhas quando o proprietário da lanchonete veio me cobrar…

Enfim apareceu uma jovem que, sem nada dizer acordou-as, tomou-as pelas mãos e lá se foram. Incluiria a mãe nas incógnitas. De volta à realidade fui comprar a passagem e por um erro no trajeto quase perdi o ônibus novamente, sendo o último a embarcar. O frio aumentara e àquela altura a garotinha devia estar com as mãos congeladas, onde quer que estivesse. Decidi retomar a leitura do jornal, mas duas mãozinhas (mais que geladas) em meus olhos me impediriam outra vez. Era “você”, e lá se foram outras dúzias de gestos repetitivos e gostosos sorrisos, sem nenhuma palavra de sua mãe ou irmãozinho.

Chegamos a Itatiba e fui o último a descer. A pequena família pegou um táxi, enquanto fui a pé. Ao chegar em casa, e enquanto abria a porta notei pessoas descarregando uma mudança na residência ao lado. Na janela, uma sorridente garotinha me acenava… Era “você”. Aonde será que poderia comprar luvas daquele tamanho?

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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