23.2 C
São Paulo
sexta-feira, 26 de abril de 2024

Crianças no Natal

Aquela véspera de Natal não fora diferente. O movimento nas ruas era enorme por conta do grande número de pessoas que se dirigiam aos locais onde participariam de algum culto, passariam a noite, trocariam presentes, fariam a ceia em família ou com amigos. Tudo em meio a um forte calor e ao trânsito cada vez mais caótico. E como em todos os anos, as compras de última hora novamente nos obrigaria a fechar a loja mais tarde do que pretendíamos, mas só tínhamos a agradecer. Havia mais de trinta anos estávamos no mesmo endereço e conhecíamos boa parte dos moradores do bairro e fregueses que compravam conosco o ano todo.

Um dos últimos clientes a entrar não me era familiar. Um senhor descalço que, a menos que eu não tivesse notado não piscara os olhos uma vez sequer enquanto estivera na loja. Pelas roupas e aparência, parecia ser um morador de rua. Antes, passou algum tempo olhando a vitrine, onde estavam os brinquedos mais simples. Após advertir um pequeno e obediente cachorro para que o aguardasse do lado de fora, entrou na loja e foi direto ao produto: um pequeno caminhão amarelo e seis bois em sua carroceria branca, num conjunto todo de plástico. Apesar de simples e relativamente barato, era um brinquedo de qualidade, um artigo que vendíamos bastante.

Com um sorriso incontido em meio a grande barba num rosto fortemente marcado pelo sol aproximou-se do balcão onde colocou o brinquedo, e tirou de um dos bolsos do paletó uma porção de cédulas amassadas, perguntando se havia o suficiente para comprá-lo.

Fiquei aliviado que naquele momento tivéssemos poucos fregueses, pois alguém poderia reclamar de sua presença. De fato, suas roupas não eram lavadas há muito tempo, exalando um forte odor e reforçando a aparência de um andarilho. Impossível não pensar por um instante que fosse, como seria seu Natal, ao passo que minha família já estava com a ceia praticamente pronta, os presentes comprados, familiares e amigos estariam reunidos no lar decorado, e até com os que estavam distantes manteríamos algum contato graças à tecnologia.

Conferi desamassando o mais que pude as notas e lhe devolvi o excedente, mas ele recusou, dizendo que não precisaria mais e que poderia ser dado a quem necessitasse. Insisti, dizendo que poderia comprar algumas coisas com aquele valor, mas ele me convenceu a depositá-lo numa caixinha de madeira sobre o balcão, destinada a doações ao orfanato da cidade. Parecia ansioso para sair com o brinquedo escolhido, e disse-lhe que poderia embrulhar para presente caso desejasse. Concordou, sem interromper o sorriso e deixar de olhar para o brinquedo em minhas mãos. Também não o vi piscar. Coloquei numa embalagem de papel dourado, fechado com um laço colorido.

Antes que saísse perguntei-lhe se seria para seu netinho, supondo que tivesse algum. Respondeu-me sempre sorrindo que não, e que era para ele mesmo. Fiquei surpreso. Adultos que compram brinquedos não são raros, já que há muitos colecionadores, mas ele e o brinquedo escolhido não tinham esse perfil. Saiu rapidamente, e talvez nem tenha me ouvido agradecer- lhe pela compra e desejar-lhe um santo e feliz natal. Suas palavras, seu olhar, seu sorriso eram a expressão de uma criança diante de um presente muito aguardado ou querido. Quando saiu, o cãozinho o acompanhou de pronto, demonstrando curiosidade pelo embrulho que levava com cuidado.

Logo depois fechamos a loja e rumamos para casa, onde receberíamos algumas pessoas para celebrarmos o Natal. Naquela noite, um misto de felicidade pelo ano que havia transcorrido bem para nós, todos com saúde, prontos para darmos e recebermos presentes e com muitas perspectivas para o ano novo que se aproximava, e de tristeza por saber que ao nosso redor haviam pessoas desafortunadas, infelizes, sozinhas.

Sei que o mundo sempre foi assim, mas nós precisamos ser assim sempre? Essas pessoas são lembradas em nossas orações, mas raramente estão em nossas atitudes. Embora já tivesse alguns compromissos com algumas instituições, e independente dos inúmeros motivos e históricos que levam pessoas a viverem nas ruas, afastadas de suas famílias, prometi a mim mesmo outra postura para o ano seguinte. Ao menos iria me sentir melhor em relação a isso. Não havia como saber se a vida na rua daquele senhor era algo pontual, recente, ou se sempre fora assim, mas mesmo com o breve contato com ele, parecia mesmo ser uma pessoa boníssima, pacata, educada e simpática.

Tivemos uma noite agradável. Apesar do cansaço estávamos todos satisfeitos e felizes, no entanto aquele homem não saiu de meus pensamentos. Até o citei em nossas muitas conversas da noite, e alguém disse que aparentemente era um sujeito que estava vivendo havia algumas semanas sob uma ponte num bairro próximo. Comentei com minha esposa que eu não queria esperar pela manhã do dia de natal para tirar essa dúvida, e disse que daria uma volta de carro até o local. Se ele realmente estivesse lá, voltaríamos pela manhã. Respondeu-me que não sairia àquela hora, até porque ainda tinha algumas coisas para colocar em ordem na casa, mas que eu fosse. No dia seguinte poderíamos falar com ele, tirar uma foto e veicular na imprensa, e quem sabe localizar seus familiares ou encaminhá-lo a alguma instituição. Concordei.

Rapidamente cheguei ao viaduto citado, e pude ver o tal homem sentado num pequeno espaço sob a ponte, onde não era possível um adulto ficar em pé, sob a luz de um pequeno lampião a pilha. Desliguei o motor. Ele nem sequer notou minha presença, embora estivesse a alguns poucos metros de distância. Estava completamente absorto… brincando… tal qual uma criança, com o pequeno caminhão e as cabeças de gado.

Fiquei comovido, fiquei sem jeito e sem ação, observando-o por alguns minutos. Dentro daquela miséria que o cercava, onde seus poucos pertences cabiam numa velha sacola de pano e pareciam ser tudo o que possuía, não havia felicidade que pudesse ser comparada à daquele instante, quando uma perfeita criança se deliciava com seu presente escolhido. Sua expressão era a de quem não precisava e nem queria mais nada, apenas viver aquele momento. Acabei por me sentir um intruso, alguém no lugar errado na hora errada.

Liguei para minha esposa dizendo que o havia encontrado e que pela manhã ela voltaria comigo para vermos como auxiliá-lo. Ainda fiquei ali mais um pouco, meditando sem ser notado. Chegando em casa, conversei com minha esposa sobre a criança que havia encontrado. Ela já havia preparado uma grande sacola contendo alimentos, suco, doces e frutas, e me disse para combinar com um amigo da família que todo ano se vestia de Papai Noel para alegrar as crianças do bairro de ir junto, levando balas e algum presente, que poderia ser outro brinquedo da loja. Adorei a ideia e mesmo sendo madrugada liguei para nosso amigo, que de imediato concordou.

Mal dormi. Logo pela manhã acompanhado apenas do amigo Noel retornei ao local por onde às vezes algum veículo passava com seus ocupantes comemorando ruidosamente o nascimento de Jesus com buzinas, gritos e garrafas de bebidas sendo atiradas pelas janelas. O lampião continuava aceso, e ele estava deitado, dormindo. O preguiçoso cãozinho não se importou conosco, nem estranhou as roupas vermelhas do bom velhinho. Meu amigo agitou seu sino várias vezes e fomos tirando os mantimentos e presentes do carro. Estávamos ansiosos para ver sua reação. Fomos nos aproximando, e ele não se movia. Experimentamos chamá-lo, mas nossas tentativas foram em vão. Estaria embriagado, ou exausto?

Infelizmente, nada disso. Estava inerte porque havia falecido. Numa de suas mãos um dos boizinhos, e o papel com o laço ainda estava ao seu lado. Ficamos chocados. Liguei para a polícia, comunicando o ocorrido. O atendente nos pediu para permanecermos no local até a chegada de uma viatura. Claro… Liguei para casa.

Naquele momento não contive as lágrimas. Tínhamos muitas perguntas, mas nenhuma resposta. Teria sido um episódio de “volta à infância”; esse seria mesmo seu comportamento, ou teria sido a realização de um desejo? E por que havia me dito que não precisaria mais do dinheiro que possuía? A polícia também nos fez perguntas sobre ele, que foi removido ao necrotério e depois de um período enterrado como indigente, já que não conseguiram nenhuma informação e ninguém reclamou sua falta. O laudo do legista apontou morte natural. Buscamos algumas possibilidades para nos confortar, como a de que ele estaria feliz no instante de sua partida, que somente aos meus olhos estivesse brincando sozinho, e que sabia que alguém o encontraria e tomaria conta de seu animal de estimação.

Já eram quase dez horas quando chegamos ao orfanato levando as doações que seriam para ele, e o brinquedo que havia comprado. Disse à voluntária que me atendeu que pertenciam a outra criança, que também havia doado todo seu dinheiro àquela instituição.

— Que Deus abençoe essa criança nesse dia do Menino Jesus! – ela me disse, enquanto Papai Noel, acompanhado de um preguiçoso cachorro era recebido com imensa alegria pelas demais crianças.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Leia mais

Patrocínio