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sábado, 27 de abril de 2024

O Cãozinho Domingo

Como todo domingo, madrugara para ler enquanto ainda havia silêncio em casa e na rua. Lá estavam todos os jornais e em frente ao portão um simpático cãozinho que não possuía “endereço fixo”. Apesar de toda minha indiferença parecia sempre “guardar” os periódicos até que eu os recolhesse.

Regada a café minha leitura (um de meus maiores prazeres) começava pelo caderno de esportes, seguindo-se os demais pela ordem de interesse. Não havia o que não fosse lido ainda que rapidamente, e por último os panfletos encartados nos jornais. Como sempre lojas comerciais, hipermercados, promoções, até que fiquei surpreso com uma folha diferente. A casa ali retratada era idêntica à minha. Até demais… o carro era igual (inclusive a placa), as plantas, a janela e até o telhado.

Não se tratava de algum loteamento, conjunto habitacional ou financiamento de imóveis. Não havia nada escrito. Passei a prestar atenção aos detalhes, indo para frente da residência. Era uma reprodução absolutamente perfeita, do piso às cores. Fosse quem fosse, o autor deveria ter fotografado e passado horas desenhando. Incrível! Liguei nos jornais e também para amigos que sabia serem assinantes das mesmas publicações. Ninguém havia enviado ou recebido aquilo… somente eu. Passei a crer numa brincadeira, apesar de ser algo muito perfeito para não ser sério.

Novamente busquei os detalhes e aí sim, algo que não combinava: entre o carro e a porta de entrada havia um cachorrinho deitado sobre um tapete. Ao seu lado, duas pequenas tinas. Resolvi esquecer aquilo e aproveitar o dia com a família, indo à praça e andar de bicicleta. Almoçamos e saímos novamente, voltando somente à noite. Já na cama ouvi latidos insistentes e fui verificar. Denunciado pelo tal cãozinho de rua um elemento saía correndo da garagem que já estava com os portões abertos.

Acionei a polícia que chegaria minutos depois, tentando sem sucesso localizar o culpado. Saí então para verificar o ocorrido. O carro quase fora roubado, não fosse a (boa!) ação do pequeno animal. A família foi unânime: ele ficaria conosco (e ponto). Lá se foram as crianças à lavanderia procurar alguma caixa e tecidos para abrigá-lo. Desapontadas, voltaram apenas com um velho tapete e duas vasilhas pequenas.

Enquanto arrumavam tudo o cãozinho já aguardava, sentado à porta. Ouvi então alguns comentários dos pequenos. Tratava-se do mesmo animal que em outras oportunidades afugentara cães de raça agressivos que às vezes escapavam para a rua e também crianças maiores dispostas a “emprestar” suas bicicletas. O nome apareceu logo e foi escolhido pelo caçula, encantado com a leitura de Robinson Crusoé: Domingo. Particularmente achara horrível, mas como ninguém se opôs…

Com Domingo acomodado na garagem, percebi que o desenho ficara então completo, exatamente como prenunciara aquela manhã. Antes de voltar para a cama fui levado a examinar outra vez o desenho, desta vez com o auxílio de uma lupa. Nada que já não tivesse visto várias vezes, exceto que com a lente pude ver pequenas letras na borda do tapete… “Domingo”… Não fui conferir. Bastaram as palavras de minha esposa. Aquele era o último de um jogo de tapetes, usado um para cada dia da semana.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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