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sábado, 27 de abril de 2024

Nas ondas do Rádio

Há quem diga que nunca é tarde para se realizar um sonho, e algo que o Groselha sempre desejou fazer ou ao menos experimentar, era apresentar algum programa de rádio. Isso nunca fora possível até que a emissora de rádio AM local disponibilizou um horário para quem quisesse fazer um teste, e ele foi o único inscrito.

Durante um mês, às segundas-feiras das três às quatro da manhã o horário era dele, com o singelo nome de “Programa do Groselha com Músicas, Poesias, Prestação de Serviços e Entrevistas”. Dependendo do retorno dos ouvintes, o contrato poderia ou não ser renovado e estendido.

Há décadas não ouvia rádio AM, era mês de julho com madrugadas de cinco graus, mas programei o despertador para pouco antes das três, me levantei, preparei um (forte) café e liguei o rádio. Era mesmo um sacrifício, mas era também um amigo realizando um sonho, e estava feliz por ele. Até indiquei algumas músicas para a programação. Faria também uma ligação à emissora para parabeniza-lo, e quem sabe até participar ao vivo da edição experimental. Depois do programa inaugural eu deixaria essa oportunidade para os ouvintes que normalmente estão acordados nesse horário, como vigias noturnos, frentistas, padeiros…

Pontualmente às três horas ouvi a (estranhíssima e longa) vinheta, com tambores africanos que deveria ter algum significado, mas me recusei a pensar sobre isso e muito menos perguntar a ele. Terminada a vinheta, ruídos de microfone, porta se abrindo e uma terrível gritaria, rosnados, pancadas, tudo incompreensível.

Fosse o que fosse, aquilo se estendeu por um bom tempo, até haver silêncio total. Sinceramente não sabia do que se tratava, e como o silêncio permanecesse, voltei a dormir e depois conversaria com ele. Por volta de quatro e meia, atendi ao telefone. Era o Groselha, me pedindo para busca-lo no hospital… Bem, sonho dele, pesadelo meu. Fui até lá.

Alguém ser atacado por um cão é algo relativamente comum. Às três da manhã um pouco mais raro. No décimo quarto andar de um edifício comercial, bem mais difícil, mas aconteceu (e com ele). Ninguém sabe como, mas o cachorro estava no prédio, naquele andar e conseguiu entrar na sala de locução onde se deu todo aquele caos. O técnico da emissora havia descido para tomar café no refeitório do prédio, e somente quando voltou pôde ajuda-lo. Fora as roupas rasgadas, marcas de dentes, arranhões, curativos, a voz quase inaudível e o grande susto ele estava bem e era só aguardar mais uma semana pela estreia do programa.

A temperatura estava melhor, não menos que sete graus; três horas; café quente em punho, liguei o rádio. Novamente aquela vinheta, e desta vez o Grosa cumprimentou os ouvintes e falava sobre a proposta do programa, mas novamente um pandemônio… gritos apavorados, correria, ruídos de móveis sendo derrubados, papéis rasgados…

Até pensei no cachorro, mas só fui saber depois que um morcego havia entrado pela janela, e a única coisa da qual Groselha tem medo (na verdade, pavor) na vida, é justamente de morcegos. Desta vez, o técnico estava lá e depois de algum tempo conseguiu expulsar o invasor alado, mas o apresentador não reunia condições psicológicas para reconduzir o programa, que teve apenas algumas músicas.

Na terceira segunda-feira repeti meu ritual do café e ouvir a vinheta, já com receio do que viria em seguida. Nada… silêncio absoluto, assim como a gelada madrugada que, de diferente, teve apenas sirenes do corpo de bombeiros. Novamente fui dormir, e soube depois que pouco antes do início do programa, acidentalmente o Grosa havia disparado um extintor na sala de locução, o que fez o técnico pensar que houvesse fogo, e ligar para os bombeiros. Até que tudo se normalizasse, o horário do programa havia se encerrado.

Chegamos na quarta e última segunda-feira do mês, e… o Groselha estava absolutamente sem voz, graças a uma gripe fortíssima. Apenas deixou por escrito a seleção musical para o técnico, e mesmo com meu elogio (o único recebido pela emissora), o contrato não foi renovado.

Apesar de tudo ele ficara contente com os poucos momentos em que estivera na cabine, e me disse que talvez algum dia tenha essa oportunidade novamente, agora já com alguma experiência e acrescentando que nunca é tarde para se realizar um sonho. Bem, o problema dele se resolveu. Agora falta solucionar o meu, que me acostumei a acordar pouco antes das três da manhã. Se ao menos a emissora estivesse com esse horário vago…

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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