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domingo, 28 de abril de 2024

O Esqueleto

A sustentação mais inesquecivelmente esplêndida que um corpo poderia ter.
Houve, uma vez, um Esqueleto que tinha vida, era só a ossada e
cartilagens, porém vivia. Não só vivia, mas também pensava, não sei como e
nem porquê, e precisava, não há como viver sem pensar. E, talvez por
pensar demais, se sentia vazio, no sentido literal e figurativo, e estava
determinado a acabar com isso. Ele, o qual havia sido o estro de Da Vinci
para seus detalhados desenhos anatómicos, não admirava o cálcio e fósforo
que davam a sua aparência a esbranquiçada inconfundível rigidez quase
eterna, tal como sua resistência. Não só isso, sentia muito também, seu
tecido era feito, principalmente, de sentimentos e sensações, era a
matéria orgânica que possuía. E, como qualquer um que se preze, ou parte
de um, queria sentir-se completamente humano, ou pelo menos, só completo,
que já bastava. Foi em uma epifania que decidiu seguir o seu mais profundo
anseio, o princípio da humanidade: a vontade de ser gente e se sentir como
tal. Conseguindo, de pouco a pouco, um pedaço para ser reconhecido como
seu e não foi por meios errados, também fiquei nessa dúvida, então não o
leve a mal, ele simplesmente criou.

Começou de dentro para fora, com prioridade no cérebro e seu complexo
sistema, era o começo para, no sentido científico da palavra,
sensibilizar-se. Depois, foi para os outros sistemas, como o circulatório
— para ter o órgão que os poetas mais almejavam e evidenciaram, o coração
— e, por exemplo, o respiratório — queria saber como era sentir o ar
entrar em seus pulmões — e, então, foi se completando, de pouco a pouco.

Após ter fisicamente completado as lacunas as quais seus ossos haviam sido
moldados para acomodar, se revestiu com músculos estriados esqueléticos,
queria ter mais segurança do que guardava dentro de si, além de ter o
controle de algo seu, já que ao longo de sua jornada humana, descobriu que
não poderia controlar tudo, nem a si mesmo, e, logo em seguida, fez-se uma
pele. Entretanto, ao longo do processo, tinha a sutil sensação de que
ainda era incompleto, não seu físico, mas a profundidade que guardava. Não
sentia-se o mesmo, era como o navio de Teseu, era um novo ou o original,
só que reconstruído? Logo ele, que fascinava a humanidade por tanto tempo,
que por ser parte de todos, entendia-os. Que era o último a restar, o mais
expressivo, que protegia aqueles que por perto estavam, o protagonista da
cena mais famosa de Hamlet — “Ser ou não ser?” —, logo ele, que nos faz
vermos dentro de nós mesmos, que produz o líquido vermelho mais belo —
útil — que há, aquele que permanece, quis mudar.

Por uma vontade incessante de ser gente completa, esvaziou-se. Não se
reconhecia mais, seria tudo mais belo se soubesse que não há como ser
completamente completo na vida, a qual é um processo de procurar o máximo
de totalidade na limitada capacidade do gênero humano. Foi, também,
percebendo que precisava das outras partes adquiridas, mas que não era
aquilo que o faria gente, nunca foi, e é difícil dizer o que era. Dúvido
que algum de nós saberá, um dia, o que nos faz gente, e, talvez, seja essa
pergunta que permite a Terra girar, ou talvez seja só o desconhecido que
não a parou ainda. E era desse mesmo desconhecido que fazia o esqueleto
ser incompleto, o mesmo que o fez completar-se e ter consciência do que
sentia. Notou que estava em uma situação muito mais hermética do que ser
completo ou não. Talvez, no fim, ele descubra que, assim como todos os
outros, humano ou não, era feito da matéria mais bela, densa e essencial
para o que ele tanto desejava intrinsecamente e inconscientemente: de vida
pensante

Autora:

Layla Azoubel

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