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quinta-feira, 2 de maio de 2024

“Narcisismo” x narcisismo: do mito à clínica

Se costuma atribuir a Isidor Sadger a utilização, pela primeira vez, da expressão “narcisismo”, por um artigo publicado em 1908, intitulado Questões neuropsiquiátricas à luz da psicanálise. Porém, em 1898, Henry Havelock Ellis, médico e psicólogo, introduziu na psicologia e, indiretamente, na psicanálise, o conceito que havia surgido na psiquiatria no final do século XIX. Freud, embora sendo o estruturador inicial da Psicanálise, só assimilou, oficialmente, a expressão, em Introdução ao narcisismo, no ano 1914. Na realidade, para ser exato, Freud havia mencionado pela primeira vez a palavra “narcisismo” em uma nota de rodapé à segunda edição dos “Três ensaios da teoria da sexualidade”, em 1910. Porém, não demorou muito para se desinteressar de sua própria teoria sobre “narcisismo”, vindo a desenvolver -para explicar as questões que, antes, havia atribuido ao “narcisismo”- as ideias de “pulsão de vida” e “pulsão de morte”, como aspectos do “princípio do prazer”, relacionando essa nova teoria ao que veio a chamar de “Isso, Eu e Super-Eu”, publicando trabalhos a respeito a partir de 1920. Lou-Andreas Salomé foi uma das pessoas que não apoiaram Freud em sua decisão de abandonar a teoria de “narcisismo”, e em correspondência a Freud, escreveu: “O senhor vai achar -eu imagino- muito específico o tom que eu tomo para falar dos sucessos aos quais pode pretender uma análise bem lograda (…). E, entretanto, o que eu sustento sobre isso está fundado naquilo que o senhor estabeleceu: toda análise deveria atingir, por ser a ocasião de uma regeneração psíquica, o substrato primitivo em nós mesmos, o qual o senhor batizou com o nome de “narcisismo” (…). (Eu não posso deixar de intercalar aqui, nesta passagem, uma glosa herética: para falar franco, o senhor veria vantagem -pareve-me- em aproveitar o mais possível o conceito de narcisismo, afim de fazer economia do “isso”* que o senhor introduziu depois, e do qual eu não gosto muito (…).”. 

Atualmente, o nome que mais se destaca entre os psicanalistas que tentam resgatar a teoria freudiana do narcisismo e sobre ela trabalhar, é André Green. Este, por volta e a partir de 1963, fez um “remendo conceitual”, para unir à teoria de narcisismo iniciada e abandonada por Freud, as posteriores de Freud, e a esse “Frankenstein conceitual”, André Green chamou de “Narcisismo de vida” e “Narcisismo de morte”. Mas voltemos a Havelock Ellis, para deixar em relevo o erro conceitual que -como dominós enfileirados, que caem, todos, ao toque do primeiro- fez surgir os “remendos conceituais”, principiados por Freud, que, felizmente, corrigiu seu próprio erro sobre tal questão. Havelock Ellis utilizou a expressão “narcisismo” na tentativa de explicar a atitude auto-erótica, em que a pessoa se satisfaz sexualmente com ela mesma, afastada do contato com outras, além da homossexualida. Havelock foi, inclusive, co-autor do primeiro livro médico em inglês sobre a homossexualidade, em  1897, e publicou trabalhos sobre diversas práticas e tendências sexuais, incluindo uma “psicologia dos transgéneros”. O “contemplar a própria imagem refletida no lago” foi associada por ele à homossexualidade, sendo, tal comportamento, considerado como um aspecto de auto-erotismo. A partir dessa e de outras abordagens erradas, “narcisismo” veio tomando contornos bizarros, tanto em Psicanálize como em Medicina, se fundindo ao conceito de “megalomania”, que, antigamente, era a designação para o que hoje se chama “transtorno de personalidade narcisista”. A partir de 1968 o conceito de “megalomania” foi considerado como “transtorno não-clínico”, e por isso não consta no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Em vez de “megalomania”, encontramos, no referido manual, o “TPN”, isto é, o Transtorno de Persobalidade Narcisista, que, praticamente, é apenas um novo nome para a antiga classificação de Megalomania.

Para perfeito entendimento do que é “narcisismo”, convém voltar à antiga dramaturgia, mais propriamente à narrativa trágica de Narciso.

As antigas tragédias gregas e romanas tinham, como finalidade, a catarse, isto é, liberação de emoções ou tensões reprimidas; ab-reação, ou seja, a descarga emocional mediante a qual a pessoa se liberta do afeto que acompanha alguma recordação de acontecimento traumático. Não foi sem razão que a referida narrativa influenciou a psiquiatras antes de Freud e ao  próprio Freud. A melhor versão diz que a ninfa Liríope foi estuprada pelo DEUS rio, cujo nome era Cefiso, que “tomou-a em suas correntezas”. Do estupro nasceu Narciso, que significa “torpôr”, “insensibilidade”. “Narciso” e “narcisismo” vem do Grego ????????? (transliteração: narkissos) a partir de ???????? (transliteração: narcóticos) que se traduz “torpor”, “tornar endurecido”, “dormente”, expressão que tem raiz em ????? (narke). O significado literal de “narke” é “torpor”.

Na melhor versão do mito o “profeta cego” -figura do terapeuta, cuja imparcialidade no atendimento está tipificada em “ser cego”- diz à Liríope que o menino Narciso teria vida saudável e longa, desde que não se colocasse a “contemplar a própria imagem”. A “imagem” é simbolo do “trauma” figurado no “estupro”. A palavra “estupro” vem do Latim STUPRUM, que significa “engano”, “fraude”, do que derivou o sentido de “vergonha”, “desonra” etc., tendo, porém, raizes no Grego “strophé”, de “strephein”, que se traduz “dobrar”, “virar”, “inverter”. A pessoa sob trauma tende a “ver a realidade pelo avesso”, isto é, “não vê as coisas como são”, e sim, “como foram”, ou seja, “fixa-se no trauma”, fica, assim, “contemplando a imagem de si, como se esta fosse a pessoa mesma”, e não mais se abre à vida… Ao contrário do que se costuma pensar -por erro de entendimento de Freud e outros- “Narcisismo” não tem como eixo a vaidade, o auto-erotismo, pois na referida tragégia, o “contemplar a imagem” não se trata de “gozar com si próprio”, “ter prazer em exaltar a si mesmo”, mas com “estar em torpor”, em “estado de apatia”, de insensibilidade frente ao que a vida oferece, é “fixar-se no momento do trauma”, manter-se preso a um passado. A referência à “Imagem” foi tomada como sinónimo de “espelho”, ou mais própriamente, de “reflexo no espelho”, e esse erro fez que se associasse a “contemplação de Narciso” à vaidade, ao auto-erotismo, ao auto-engrandecimento etc., como, infelizmente, ainda se vê na Psicanálise e em Medicina. A palavra “contemplação” vem do Latim CONTEMPLARI, que se traduz, originalmente, “marcar (ou ficar em) um espaço para olhar”. Esse sentido, isto é, o original, tem relação com algumas práticas de adivinhação na antiga Roma. A palavra forma-se de COM e TEMPLUM, sendo TEMPLUM “espaço de previsões”, do que derivou, em Português, “templo”. Dessas observaçôes, considerando cada detalhe da tragédia de Narciso, percebe-se que, “narcisismo”, é um “manter-se em uma circunstância”, em um passado, em um trauma, e não na realidade fora da ocorrência traumática. Para o narcisista, tudo gira em torno dele, mais própriamente de seu trauma, sem que ele tome ciência disso; as relações, de todos os tipos, costumam ser afetadas por tal coisa, ficando, a pessoa com transtorno narcisista -conceito aqui corrigido- desconfiada de tudo e de todos em diferentes graus. Além disso, surge a tendência à dominação, ao controle sobre as pessoas mais próximas, como resultado da falta de controle sobre si, da “perda de si na imagem refletoda no lago”, isto é, no momento que gerou o trauma. O “rio”, ou “DEUS rio”, representa a vida, que, como rio, “flui, ora calmamente, ora de maneira turbulenta, com correntezas fora do controle daquele que, no rio que é a vida, nada, algumas vezes contra as correntezas, em outras, deixando-se levar por elas…”.

Termino por aqui o presente artigo, informando que o mesmo é parte do Curso de Formação em Neuropsiquiatria Analítica, originado de extensas pesquisas que resultou no livro NPA: Ensaio Propositivo de Neuropsiquiatria Analítica, publicado por mim entre 2019 e 2020, e que, talvez, não se firme como Ciência, pelo que, alguns terapeutas, vem dizendo sobre mim, no que se refere as varias observações e reformulações que tenho realizado sobre a Psicanálise. Alguns terapeutas tem preferido chamar o movimento NPA de Psicanálise Tólmiana, dizendo que, após Freud e Lacan, eu estaria dando o terceiro grande passo para uma evolução da própria Psicanálise. Não sei qual será o resultado de todos os estudos que venho realizando sobre o fenômeno humano, e não me importo se a NPA se firmará ou não como Ciência. O que realmente é importante é que meus estudos, por vezes extenuantes, sirvam de inspiração, de “aguilhão”, gerando um tão necessário incômodo para que se vá além, muito além dos valiosos rudimentos deixados por diferentes teóricos-clínicos, como Freud e Lancan.

* Em Alemão, “it”, que se refere a algo indefinido, uma “coisa”. Geralmente se coloca, em traduções para o Português, “id”. O trecho da correspondência de Lou-Andreas Salomé encontra-se em Carta Aberta a Freud, edição primeira em lingua portuguesa pela Princípio Editora, em 1989, e em segunda edição pela Landy Editora, em 2001.

Autor:

Cesar Tólmi – Psicanalista, jornalista, filósofo, artista plástico autodidata, escritor e idealizador da Neuropsiquiatria Analítica, com integraçâo dos campos clínico, forense, juridico e social.

E-mail: cesartolmi.contato@gmail.com

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