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sexta-feira, 3 de maio de 2024

O Argentinismo

A paixão pelo futebol é complexa. O termo Argentinismo pode representá-la, mas sem exatidão. Adoraria ter um argumento plausível, porém é um esporte tão sublime pois recusa a exatidão. Põe lado a lado pessoas sem conexões. Diferenças ficam em segundo plano. Vale o que as aproxima ante às discrepâncias que as espaçaria.

Divido com os incógnitos as dores densas, prófugas. Nos baques adviemos numa intimidade fraternal. Por quê? Uma só equipe não é capaz disso. O Santos de Pelé, talvez? A Holanda de 74, o Escrete de 82 ou o Milan de Gullit, Van Basten e Rijkaard. Sem eles não haveria o modelo de jogo de Pep Guardiola e o Futebol de 2022 talvez fosse bem diferente. Mais “achicado” como fez Menotti em 1978. Funcionou. A Argentina venceu, tão-só, a Holanda de Cruyff. Pouca coisa? Coloquem um vídeo deste time de laranja e se deliciem com o Futebol Total.

Quiçá, notem outra vez a dúvida, o pretexto de milhões se mobilizarem por uma causa comum, em paz; guiados pela mesma paixão. Isto basta. O arcano deve estar no abstrato. O jogo na sua pureza é virtuoso como um chute folha seca, obra de Didi. Corpos condescendem a isto. Por 90 minutos a lógica some; e eis que aparece a Copa do Mundo, o ápice deste misto de cálices. Será só a mim que ela provoca o irascível? Se não, avisem-me. Choro durante o hino nacional, seja ele qual for.

O que valida cinco milhões de pessoas às ruas de Buenos Aires para celebrar um título mundial? O que há de especial nele? Há, com toda a certeza, algo que o abaliza, porém é impossível de esclarecer. Melhor o mistério.

Difícil é ler-se diante de tal sentimento. Quem experimenta a cada quatro anos o almejo pela estrela intui as ruas desertas e também sabe que pode provar do sabor azedo da derrota. Provável que só aquele que se dê ao trabalho de aprender o hino nacional de dezenas de países e cantar como se fosse o seu possa explicar. Será que sou o único?

Eduardo Sacheri merecem um espaço. Em “La pregunta de sus ojos” há uma parte dedicada ao Racing, time do Cilindro de Avellaneda. Cito: “y su humor lúgubre se lo debía, ni más ni menos, a una nueva derrota del Racing Club de Avellaneda. O sea que había estado a punto jorobarle a una pobre mujer por el fútbol. El dichoso, el maldito, el eterno asunto del fútbol”. Mais uma pista do Argentinismo. Coloco-me em lugar dos argentinos. Em verdade os invejo. Estou com uma cobiça que é cara aos que me compreendem. Queria a sexta estrela. Esperar até o próximo 12/07/2026 é muito tempo.

No Catar exauriram-se as possibilidades. A despedida de Modric, o apagar das luzes para um arquétipo de jogo sensabor custou ao apaixonado um Brasil apático. O escrete sucumbiu ao cerebral. A estiagem para o cultivo de craques de craques nos custou mais uma Copa, por isso Mbappé não virou o jogo contra a Argentina. Acima da média? Sim. Craque? Tenho dúvidas. Modric com as suas passadas elegantes chutaria no canto esquerdo de Martinez e eis terceiro gol; Zidane num momento pifaria a bola no meio de campo e segundos depois já estaria à meia-lua, pronto para finalizar. Lembrem que só Camisas 10 realizam as proezas de Ronaldinho e Rivaldo num só jogo (Brasil e Inglaterra em 2002). Numa jogada individual clareou espaço para que Rivaldo empatasse o jogo. No segundo tempo fez um gol de falta ainda inexplicável. Se é raro haver um só Camisa 10, pense o leitor mais novo que o Brasil tinha que decidir para quem entregaria a camisa com o número de Pelé, Maradona e Lionel. Ronaldinho era o 11 e Rivaldo era o 10.

A história poderia ser reescrita por Kylian. Um camisa 10 mataria o jogo em minutos. As linhas da Argentina estavam perdidas. Bastava uma só jogada e a taça iria para Paris. Fatuidades não vencem jogos. Craques sim. Ficou a cargo da bola escolher. Olhem Neymar. A bola ainda o sente distante. Prende-a quando compartilhar seria a decisão correta; abre avenidas, todavia olvida de pavimentá-las. Cruyff criava espaços e punha seus colegas à cara do gol. Quantos gols perdemos pela soberba? Quantas ruas não ladrilhadas ficaram presas numa disputa de bola desnecessária? Lionel provou que tudo isso é simples com um pouco de Argentinismo. Bastou conquistar a bola.

Faltou-nos Argentinismo. Os 5 milhões de Argentinos em torno do Obelisco o exemplificaram.

Autor:

Gustavo Jaccottet – Advogado

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