Havia tanta raiva dentro dela, que ela já não se lembrava mais o que era sentir paz.
Ou melhor, não sabia mais se já havia sentido, ou se era apenas a memória de um sentimento que ela nunca teve e nem poderia ter.
Como ter paz se a vida estava sempre em movimento, e se esse movimento sempre parecia levá-la ao caos?
Mesmo quando seu coração buscava tranquilidade, a vida dava um jeito de levá-la para um lugar em que ela não escolheria estar; um lugar de raiva.
Fernanda lembrava com carinho de alguns dias de sua infância.
Se lembrava de momentos em que pôde escolher entre o certo e o errado, sem a sombra do medo da punição, e em sua grande maioria das vezes ela escolhia o certo.
Nem sempre, claro, pois nem Fernanda era perfeita.
Toda criança comete erros, e elas devem aprender as consequências que seus erros causam em outras pessoas.
O que incomodava Fernanda é que algumas pessoas pareciam crescer, aprender, e mesmo assim seguiam fazendo o mal.
Um mal leve, pouco sentido ou percebido, mas Fernanda sabia que era um mal mesmo assim.
Podia parecer que não afetava a ninguém, mas afetava sim, e aos poucos.
E as vítimas desse mal, assim como Fernanda, sentiam raiva.
E essa raiva as tirava mais e mais sua pureza, dia após dia.
E então, com o passar do tempo, apenas uma sombra delas restava.
Uma sombra briguenta, que afastava tudo e todos de perto dela.
Uma sombra com razão, mas sem ninguém.
Uma sombra que confia mais nas garrafas em sua cozinha do que nas pessoas próximas a ela.
Ainda há brilho suficiente para manter a sombra viva.
Mas a noite se aproxima cada vez mais…
…e a sombra, que tanto sentiu raiva, hoje sente medo.
Um conto que mexe com a gente… porque todos conseguimos enxergar o que passa com Fernanda, já estivemos nesse lugar de raiva, agora o que sobra é o medo.