Oi mãe, espero que esteja bem. De início peço desculpas por tornar essa comunicação pública. Apesar de muitos acharem normal, e eu discordar de tornar público o que muitas vezes é privativo de quem manda e recebe, espero que possa despertar algo maior que a perda de um pouco da nossa intimidade. Acho que a senhora vai entender.
Dito isso, e como segunda, dia 05, seria seu aniversário de 96 anos, vou aqui lhe contar algumas coisas, caso não seja do seu conhecimento, no lugar onde está nesse momento.
Não poderei me alongar muito, agora o costume é ser prático, sucinto e rápido. As pessoas estão impacientes, e o que era só “tempo é dinheiro”, agora tempo é, além de dinheiro, para ser gasto na frente de um aparelhinho, que alguns estão usando para ler esta, e que a senhora não conheceu, mas que permite fazer a maior parte das “necessidades” (ou não) do dia a dia, sendo uma delas aparentar o que não se é. Coincidentemente hoje, dia que escrevo, é 01 de abril, o dia da mentira.
Mas vamos ao que interessa. Desde aquele 21 de agosto de 1991, quando a senhora deixou esse mundo, data essa que foi muito importante no cenário político mundial, pois foi o início do esfacelamento da antiga União Soviética, nossa família mudou um pouco. Naquele momento, como hoje, houve muitas incertezas no planeta. Deixemos isso para depois. Nestes quase 30 anos, a senhora ganhou dois netos, meus filhos, um casal de bisnetos da sua única neta, e uma nova nora, minha atual esposa. Tenho certeza que a senhora iria gostar e se dar muito bem com todos, o que dada sua personalidade, não seria nada difícil. Infelizmente, já está com a senhora seu único genro.
Como falei, estamos num momento de muitas incertezas. Incerteza é uma coisa (lembra quando a senhora reclamava que eu usava muito a palavra coisa?) a qual o ser humano detesta. Vivemos na nossa rotina, amarrada principalmente num relógio, e como uma máquina, tentamos realizar o dia, e essa existência, de acordo com tudo que planejamos. E
assim, sem nos darmos conta, a vida passa repetitivamente. Muitos nem a vivem, presos nessa constância da rotina criada e mantida pelo cérebro, pois se há a mínima possibilidade de saída desta, já se torna motivo de medo, apreensão e fuga da possível fuga. Outros tantos apenas sobrevivem, sobretudo devido às condições socioeconômicas. Acontece que tem o imprevisível, que sempre ocorre, mas em períodos diferentes e com pessoas distintas, e assim não abala o todo. Mas hoje não, mãe. O imprevisível chegou de maneira abrangente, provocado pelo descontrole dos humanos, principalmente devido ao uso abusivo do planeta, e tem trazido muitas dores e sofrimentos, mais ainda no nosso país. É uma pandemia causada por um vírus. É mãe, uma gripe. Sendo brando no adjetivo, e em respeito ao seu pacífico temperamento, alguns irresponsáveis fizeram pouco, e a chamaram de gripezinha, mas fato, incontestável, é que chegamos a 322 mil mortos em um ano, mais de 60 mil só em março, e as previsões continuam muito tenebrosas. Será a maior catástrofe da existência desse país.
Apesar de estarmos todos com saúde, eu, assim como a maioria, tenho medo. Na verdade, medo, angústia, tristeza, raiva, em alguns momentos, e decepção com comportamentos negacionistas, com tudo que estamos a passar. De outra parte, alguns momentos de risos, na tentativa de ter algum alívio, esforço para aumentar o ânimo e conforto dos outros, doações para quem mais precisa. E muita resiliência e determinação. O medo aumenta quando chegam notícias que gente muito próxima foi ao seu encontro, ou está passando por períodos hospitalares dolorosos. Parece que a morte se avizinha mais. A senhora sabe bem o que significa estar em hospital, e também a perda de entes queridos. Acho que, por tudo que vivemos no passado de perdas na família, tenho tido mais facilidade nessa resiliência citada, mas não menos sofrimento e empatia, com o que ocorre no nosso país e com a nossa população. Acho que a senhora não iria acreditar, mas quem adoece fica isolado, sem visita nos hospitais, e caso venha a falecer, a família não pode nem se despedir. No maior país cristão do planeta, como se não bastasse o que já falei, os familiares não podem receber o
abraço dos amigos nesse doloroso período da perda, pois as missas, visando conter o contágio, estão suspensas. Agora é tudo de maneira impessoal, por vídeo, como se fosse na TV. Não sei se a senhora consegue entender ou mesmo imaginar.
Mãe, como falei não posso me estender nessa missiva. Gostaria de lhe dar melhores notícias. Também queria muito não lhe preocupar, e lhe digo que estou me cuidando ao máximo que posso. Aliás, todos estão se cuidando por aqui. Por um benfazejo destino, ao contrário de boa parte das pessoas no nosso país, temos condições que nos propiciam isso. Falta aos que hoje têm essa pseudo-segurança, lembrarem-se que o imprevisível está sempre à espreita, chegando de diversas maneiras, assim nunca é demais pensar no próximo no momento atual.
Como disse um poeta nordestino, que desconheço o nome:
A vida é um S
Uma perna que sobe
Uma perna que desce
E uma parte no meio
Que ninguém conhece.
Não sei se onde a senhora está, é possível saber o que nos vai acontecer, e mesmo a todos, mas peço que com o enorme coração de mãe que a senhora sempre teve, ajude aos que aí chegam e conforte os que aqui ficam.
Feliz aniversário!!!
Obrigado por tudo, com muita saudade e amor.
Francisco Martins Neto.
Um belo texto! A sinceridade nas palavras para com quem já não está mais em nosso meio.
Obrigado Ana. Fique em paz, fique bem, cuide-se !