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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Segredo

Foi para agradecer uma graça alcançada que Groselha promoveu uma procissão da matriz de Ibicitipiranapiancatiba até uma pequena capela na zona rural, local onde nascera e que apesar de não mais pertencer à família era mantida pelos atuais proprietários. Na chegada haveria uma celebração, e a volta se daria de ônibus.

Apesar da distância relativamente curta, uns dezoito quilômetros, houve quem recomendasse que um carro de apoio acompanhasse o cortejo para qualquer eventualidade. E foi o Groselha quem conseguiu essa condução com um velho conhecido dos tempos do primário.

Quando o veículo chegou ficamos sem jeito de recusar a gentil oferta do agente funerário da cidade… De fato era melhor que nada, mas que a imagem de uma procissão seguida por um carro funerário era incômoda, isso era.

Pouco antes da saída um corvo pousou sobre o carro, e mesmo tendo sido afugentado inúmeras vezes, voltava sempre a pousar sobre o veículo, sendo então “aceito” pelo grupo. No horário previsto a procissão teve início ao som de sinos e fogos. Era uma alegre caminhada no mês de agosto, e o sol forte não tardaria em nos acompanhar pela acanhada (e escorregadia) estrada de terra rumo ao nosso destino. E logo no início, o carro corvo passou sobre o pé de um dos fiéis. Achei que ele não prosseguiria, mas mesmo mancando, seguiu firme. Durante o caminho, em meio aos participantes muitas reflexões me vieram à mente. Assim como eu, cada um deles tinha seus agradecimentos, seus pedidos, intenções, aflições. Não havia como não se emocionar, pensando inclusive que esse costume se repete desde os tempos bíblicos.

Procissão significa “caminhar”. Normalmente um cortejo religioso em devoção a algum santo, ou para se fazer algum pedido (como pedir chuva em época de estiagem), mas também são realizadas para agradecer algo, como uma graça alcançada. Ali eram umas vinte pessoas, algumas descalças, dentre familiares, amigos e casais reunidas pela primeira vez, mas a procissão do Círio em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré atrai milhares de pessoas (uma das maiores manifestações religiosas do planeta), e tem sua origem nos anos de 1793.

Já não ouvíamos mais os sinos da matriz. Somente os passos na escorregadia estrada, as conversas dos participantes e os sons da natureza. Dois integrantes levavam mochilas com fogos, que chamavam a atenção por onde passávamos. Vi poucas pessoas curiosas, mas muitos cães estranharam o movimento, e um deles atacou um homem que estava no cortejo. Apesar de mordido na perna o carro de apoio não foi necessário e o homem ferido continuou a caminhada.

Também pensei na beleza e na energia dessas pequenas igrejas, como aquela à qual nos dirigíamos. Todas têm sua história, desde sua construção, das imagens, dos vitrais, arquitetura, reformas, festas. E a história das pessoas que trabalharam e ainda trabalham nisso para mantê-las… Era muito belo pensar nisso tudo, pois quando as pessoas se unem com um propósito realizam o que desejam. São famílias, amigos, conhecidos, moradores, trabalhadores, todos colaborando de alguma maneira.

Logo uma breve parada para aproveitarmos a pura e fresca água de uma nascente à beira da estrada. Ali alguém foi picado várias vezes por marimbondos, mas um incidente que não impediu a pessoa de continuar na procissão. Pouco depois um dos fiéis pisou num grande prego, e mesmo com dificuldade para andar, não desistiu.

Havia muito que eu não fazia uma caminhada assim, numa estrada de terra em meio a paisagem rural. Vi muitas plantações, criações, lagos, aves… Tudo muito agradável, e algo que recomendo a todos como verdadeira terapia.

De repente, um grande susto: um dos fogos explodiu sobre os participantes, sendo que alguém foi atingido bem próximo à cabeça. Ficou surdo de um ouvido, com o rosto um pouco queimado, mas não era isso que causaria uma baixa, e o homem seguiu em frente. Ah, e os corais?! Quantas belas músicas tão bem executadas nessas capelas! Muitos ensaios, famílias participando unidas… Isso permanece em nossa memória para sempre, tanto que me lembro da música de minha primeira comunhão!

Novamente um susto, quando alguém escorregou e caiu numa ribanceira, machucando-se bastante. Várias pessoas ajudaram, e o homem voltou a caminhar, ainda que com grande dificuldade. Quanta fé e determinação!

Os fogos continuavam a ser disparados, e infelizmente um deles acabou causando um incêndio num pasto, pela mata muito seca. Alguém se prontificou a passar por uma cerca de arame farpado (machucando-se muito) para impedir que o fogo se alastrasse, mas acabou se intoxicando com a fumaça e precisando de ajuda. A utilização de fogos foi cancelada (e para sempre). Aguardamos um tempo e o homem não aceitou abrir mão de sua caminhada.

Já nas proximidades da chegada é que as conversas deram lugar a orações e cânticos, sendo que a maioria permaneceu em silêncio. Muitos também demonstravam cansaço após duas horas e meia de percurso, e àquela altura o calor já era intenso.

Logo pudemos avistar a bela capela no alto de um morro à direita da estrada, onde algumas pessoas aguardavam nossa chegada. Foi o trecho mais íngreme e difícil do percurso e na subida foi possível ver que alguns participantes estavam muito distantes do grupo, sendo o último logo à frente do carro corvo, caminhando com grande dificuldade, mas dispensando qualquer ajuda para prosseguir. Na chegada, não foi necessário nenhuma palavra para que todos permitissem que o homem bastante cansado, atropelado, manco, mordido, picado, perfurado, queimado, surdo, despencado, arranhado, cortado, inchado e intoxicado, fosse o primeiro a entrar na capela. Nada mais justo, por sua determinação e exemplo de perseverança!

Todos aguardaram sua chegada, estávamos prontos para aplaudi-lo, e quando faltava um passo para adentrar à capela… ele desmaiou…

Novamente não foi preciso nenhuma comunicação, e todos pensaram a mesma coisa: ele seria levado para dentro, voltaria a si achando que teria conseguido cumprir sua jornada, e que teria perdido os sentidos já dentro da capela.

Assim foi feito.

Esse é um segredo guardado até hoje entre todos do grupo, e por se tratar de algo confidencial seu nome jamais será revelado.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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