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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Saturnino

Ligação às duas e meia da madrugada só podia ser do Groselha… E era. Em viagem de trabalho demoraria mais que o previsto para retornar, mas havia combinado com um tio que residia em Ibicitipiranapiancatiba de ir busca-lo e leva-lo a outra cidade, onde passaria a residir com um de seus irmãos. E preferia não deixá-lo ir de ônibus, pois já tinha certa idade, teria de ir só, e jamais havia saído de onde morava. Pediu-me então para fazer isso por ele.

Sem problema. Logo pela manhã cancelei meus compromissos de dois dias e rumei para a distante cidade. Após muitas horas de estrada e pedágios, cheguei à área rural num sítio onde Saturnino trabalhava e morava sozinho. Na casa extremamente simples, com algumas galinhas e canteiros em volta, seus poucos pertences já estavam todos encaixotados para a viagem.

Após me identificar perguntei-lhe se estava pronto. Disse-me que sim. Há muito vinha se preparando para deixar o local onde nascera e vivera até então, sem nunca ter saído do município. Pela primeira vez na vida iria percorrer uma estrada pavimentada, passar por outras cidades e rever seu irmão mais novo, o que não ocorria há muito tempo. Mas antes de ir pediu-me permissão para se despedir da criação e do local onde passara sua vida.

Ali sempre vivera em perfeita comunhão com a natureza que lhe dera alimento, morada, sustento. Ele literalmente conversava com os animais e plantas, e era muito grato por tudo. Via-se, era um bom homem e que só iria partir por conta da idade, reduzir seu tempo de trabalho, residir numa cidade com mais recursos e ter a companhia de parentes, de alguém que pudesse cuidar dele quando e se necessário, pois até ali sempre fora independente.

Claro, com todo respeito e paciência, aguardei. O que eu não sabia é que na propriedade havia duzentas e vinte cabeças de gado, o que tomou o dia todo e também o seguinte. Precisei desencaixotar alguns utensílios para preparar nossa comida. Após despedir-se da casa, do poço, de toda a flora e fauna (inclusive aquática), faltava ainda despedir-se dos amigos e conhecidos. Não eram tantos assim, mas cada um morava numa propriedade, e precisavam ser localizados na plantação, granja, pasto, ou onde estivessem.

Dali, fiz algumas ligações e cancelei meus compromissos pelos próximos dois dias. Rapidamente entrei no ritmo de vida dele. Tudo a seu tempo, a tudo se dava o devido valor e gratidão, de forma pura e sincera. Por último os conhecidos da cidade e uma visita à igreja matriz, onde ia todos os domingos. Pusemo-nos então, na estrada. Logo que saímos ele dizia ter a sensação de estar esquecendo algo, mas eu mesmo havia feito (e mais de uma vez) uma operação “pente fino” enquanto o aguardava, e nada havia ficado para trás. Vida simples ele sempre tivera, sem nunca utilizar um eletrodoméstico, sem conhecer nada do que a grande maioria das pessoas conhece considera importante, o que me fez pensar erroneamente que não conversaríamos durante o caminho. Ele tinha sua história pessoal, era muito divertido e sábio. Conhecia o que era preciso conhecer, e não futilidades.

Mas 340 KM depois, a constatação: seu canivete, presente de seu avô tinha ficado entre duas ripas do telhado da cozinha. Não me importei em voltar para buscarmos algo que lhe era tão especial. E com ele agora feliz, retornamos novamente à estrada. A viagem foi cansativa, sem dúvida, mas como me apeguei a esse sujeito… A cada parada para um café era uma verdadeira briga, pois ambos queríamos pagar a conta e usávamos toda sorte de estratégias para passar a perna no outro. Demorou, mas chegamos à cidade de Santa Devoção, onde iria viver uma nova e provavelmente última etapa de sua vida, dessa vez em família.

Quando chegamos foi comovente presenciar o reencontro entre irmãos que há muito não se viam. Como parte da comemoração um grande e inesquecível almoço, com todos muito felizes. Para me agradecer, fizeram questão que eu passasse um dia com eles, e dali liguei para cancelar alguns compromissos. No dia seguinte precisei deixá-los. Tinha um longo caminho pela frente. Agradeci a todos e desejei a ele felicidades, sabendo que estava com pessoas boníssimas e que não tardaria a estar integrado à natureza do local. Por sorte ele não viu minhas lágrimas quando olhei pelo retrovisor e o vi correndo atrás do carro por alguns metros, agitando o chapéu de palha numa das mãos e me acenando com a outra, em meio a um grande sorriso… Danado de amigo…

Já havia percorrido mais da metade do caminho, e ao fazer uma parada num posto de gasolina acabei por encontrar o canivete de Saturnino. Ele o esquecera no porta-luvas. Não daria certo devolvê-lo pelo correio, pois era outra propriedade rural muito afastada da cidade e demoraria em obter algum endereço para o envio, sem contar que ele ficaria preocupado e aborrecido por não encontrar seu presente tão querido. Sem pensar duas vezes retornei à cidade, e aproveitei para cancelar mais alguns compromissos.

Dizem que a amizade surge quando aprendemos a admirar as qualidades de algumas pessoas que Deus espalhou pelo mundo, dando-nos a missão de encontrá-las. Nesse caso, sem dúvida o universo conspirou a meu favor. Depois daquele dia não o vi mais, embora esteja aguardando uma oportunidade para fazê-lo, mas através do Grosa sei que está bem e muito feliz. Muitas vezes me lembro dele, quase sempre quando paro para admirar as estrelas, algo que aprendi com ele. Saturnino significa “dedicado a Saturno”. Antigamente as culturas orientais designavam o planeta Saturno como a “Estrela da Terra”, e estrela é uma pessoa a quem se quer muito. Para quem o conhece, faz todo sentido.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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