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terça-feira, 23 de abril de 2024

Iatrofobia

Certamente você conhece alguém que tem medo (ou pavor) de alguma coisa. Isso é muito comum, e quase toda família tem algum membro que teme altura, tempestades, cães, etc, e há quem tenha medo de médico, que é uma fobia específica, a iatrofobia.

Seu Danilo, já idoso nunca havia ido ao médico, e nas vezes em que traziam o profissional em casa ele parecia ser dotado de um sexto sentido, pois quando o doutor chegava ele já havia desaparecido sem que ninguém o visse.

Sempre residiu num sítio tranquilo um pouco afastado do centro. Com o tempo a cidade cresceu, seus vizinhos lotearam suas propriedades e a moradia do seu Danilo foi ficando ilhada em meio a casas, comércios, e também um posto de saúde. Ele mesmo já vendera parte de suas terras em épocas difíceis, mas não abria mão de continuar vivendo ali.

Sempre se virou com simpatias, chás, benzimentos ou esperando melhorar sozinho, mas desta vez ele estava mesmo com algum problema mais sério, que necessitava alguma investigação. Via-se que estava desconfortável, aparentemente com algum problema de coluna.

Para a equipe de saúde do bairro aquela resistência era uma mancha no histórico de atendimentos. Exceto por ele, todos da comunidade já haviam ido ao posto de saúde, fosse para vacinação, curativos, remédios, consultas, orientação, palestras, enfim. Todos o queriam muito bem, já que era muito conhecido, simpático, e gostariam que ele se cuidasse melhor. Afinal, era para isso que ali estavam.

Certo dia precisei substituir o agente comunitário responsável pela área de endereço do seu Danilo. Sua casa não fazia parte das residências a serem visitadas naquela oportunidade, mas aconteceu de eu pedir justamente para ele um copo d`água, pois que o calor estava terrível. Muito amável me fez entrar e descansar um pouco à sombra da varanda, enquanto chamava a esposa para receber a visita. Ele era alto, bastante magro, muito falante, tinha a voz rouca, a pele queimada do sol pelo trabalho de tantos anos na lavoura, e não demorou a contar rapidamente alguns causos, curiosos e engraçados.

Em meio a conversa pensei em aproveitar o momento para convencê-lo a se consultar com um médico. Havia percebido uma brecha, e não perdi tempo. Contei a ele um caso inacreditável ocorrido havia quinze dias, lá mesmo no posto de saúde do bairro aonde todos iam se consultar.

Foi numa manhã enquanto eu aguardava à porta de entrada a equipe para fazermos uma visita a um paciente acamado. Um homem idoso chegou carregando uma bicicleta, dessas antigas, grandes e pesadas. Ele a carregava como se fosse uma mulher desmaiada que estivesse em seus braços (nesse momento ele começou a rir), e foi entrando no posto. Eu disse a ele que poderia deixar a bicicleta do lado de fora e ficar sossegado, pois ninguém mexeria nela.

Aí ele me disse que queria ver se conseguia uma consulta (para a bicicleta…!!!), pois ela não estava nada bem. Seu Danilo estava curioso e se agitava na velha cadeira de madeira.

Continuei: o sujeito falava com a voz embargada e descreveu sua preocupação com o estado da “magrela”. A corrente e o guidão estavam quebrados, mas havia vários outros defeitos menores, e ele queria ver o que a médica poderia fazer por ela.

Um tanto surpreso, disse a ele que naquele dia a Dra. Alice tinha uma quantidade grande de pessoas para atender. Eram muitas crianças e eu achava pouco provável que pudesse atendê-lo sem consulta agendada, mas enquanto conversávamos a médica abriu a porta do consultório e ele não se conteve. Pediu-me licença, e com a enorme bicicleta nos braços, foi falar com ela.

Seu Danilo sequer piscava, estava inclinado para frente e totalmente concentrado no que eu falava. Prossegui: A Dra. disse a ele para entrar. Com todo cuidado, ajeitou a bicicleta para poder passar pela porta sem batê-la (nesse instante fui interrompido pelo seu Danilo que já queria saber o desfecho da história). Passaram-se alguns minutos.

De onde eu estava pude ouvir barulhos que vinham do consultório, e logo a porta se abriu. Para meu espanto, o homem saiu de lá andando na bicicleta! Nem sequer se ouvia o ruído da corrente, de tão macia. Parecia nova em folha! Com um sorriso de satisfação ele passou por mim e seguiu rumo a igreja, onde iria agradecer pela graça alcançada, enquanto a Dra. já chamava a próxima paciente, uma garotinha que estava gripada.

Seu Danilo estava eufórico. Aproveitei para reforçar: se ela consertava bicicletas naquela situação, imagine se não daria jeito para as pessoas? Ainda se mexendo bastante na cadeira, seu Danilo exclamou:

— Mulher, pode marcar uma consulta para mim! Mas com essa doutora!

Fiquei satisfeito com o desfecho de nossa conversa. Agradeci a atenção, as conversas, por haverem me recebido em sua casa e pela hospitalidade. Pude comprovar, como todos me disseram, que ninguém saia dali sem tomar um enorme, delicioso e gelado copo de garapa. Chegando ao posto, já falei com a médica sobre a tal história, para que ela não estranhasse caso ele tocasse no assunto.

Dias depois verifiquei na listagem de consultas agendadas, e lá estava seu nome. A primeira consulta do dia, numa segunda-feira de manhã. Se ele não desistisse seria um dia memorável para a equipe de profissionais da saúde. E logo depois, da recepção notei uma empoeirada caminhonete parando em frente ao Posto. Com alguma dificuldade, seu

Danilo abriu a porta do passageiro e desceu. Usava a roupa de missa, mas não dispensara o inseparável chapéu de palha. Trocou algumas palavras com o motorista e em seguida retirou, em partes, uma velha bicicleta da carroceria.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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