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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Haicais de Adonias

Dezoito dias (ou um milhão, quinhentos e cinquenta e cinco mil e duzentos segundos) de…chuva. Se é que (por alguns segundos) parou de chover, não percebi e a expectativa de que o dia seguinte seria melhor nos prendeu no litoral todos os dias das férias. Groselha acertara tudo por telefone e pagou (sem direito a devolução) antecipadamente pelos dias todos. A apenas dois quarteirões da praia, pela descrição a casa parecia ser um paraíso, justo o que buscávamos como lazer.

De fato eram dois quarteirões, mas cada um tinha 350 metros, distância aproximada que o carro precisou ficar longe da casa por causa de uma enorme valeta (com água, claro) no caminho. Nosso espaço era dividido com uma quantidade impressionante de moscas e… goteiras. A (esperada) pesca no mar não foi possível, assim como qualquer coisa que pretendíamos. Os dias se passaram entre aperitivos, comidas, aperitivos, TV, aperitivos… além de algumas competições idiotas como adivinhar quanto tempo um copo demoraria em se encher d’água… esse tipo de coisas.

O ruído da chuva e a monotonia do (deserto) local só eram quebrados às seis da manhã com o Adonias, um garoto de uns nove anos que por ali passava retornando somente à tarde, com várias sacolas. Uma criança comum, exceto pelo fato de eu não entender uma palavra do que dizia. Cheguei a pensar que estivesse com algum problema auditivo, mas ele falava muito rápido, algo que se aproximava de um dialeto. Vinha “conversando” sozinho e em voz alta ou numa cantoria (suponho que fosse) horrorosa. Às vezes estava acompanhado de uma menina (de voz agudíssima) menor que a julgar pela aparência deveria ser sua irmã. Quando ambos “cantavam”… Deus!

Certo dia chegou-se a mim e disse… algo. Constrangido, pedi desculpas, dizendo que não ouvia bem e assim não compreendia o que as pessoas me diziam. Perguntei se não poderia escrever. Assim o fez e pude ler, então: “em casa da vó tinha muitos mosquitos como tem hoje”. Disse a ele que aquilo era um haicai. Aí, quem não entendeu foi ele. Expliquei que o haicai era um poema de origem japonesa e em sua forma clássica compõe-se em dezessete sílabas japonesas divididas em três versos de cinco, sete e cinco sílabas, com alguma referência à natureza e a um acontecimento particular que ocorre no presente.

Noutros dias novas traduções escritas em haicais e meu conselho para que os continuasse produzindo, pois era muito bom nisto. Futuramente poderia lançar um livro de haicais, o que seria belíssimo. No último (e chuvoso) dia em que ficamos na água, ou melhor, praia, presenteei Adonias com um rádio gravador praticamente novo (já que eu “não ouvia” mesmo…). Disse que na caixa estava a nota fiscal, com meu nome e endereço. Caso viesse a Itatiba algum dia, seria um prazer recebê-lo.

Os anos se passaram e (apesar de ainda me sentir úmido) nem me lembrava mais do Adonias. Só fui fazê-lo ao receber um envelope pelo correio do (agora nem tão) garoto dialético. Encantado com a lembrança li que me mandava algumas dezenas de haicais que continuou fabricando no dia-a-dia. Mas… tinha que ser gravado em uma fita K-7?!

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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