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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Alguém Familiar

Do ônibus vi alguém que me parecia familiar, mas era muito pouco provável naquele fim de mundo aonde somente eu iria tentar ampliar as vendas. Na verdade havia tido sorte, mas até Itatiba ainda havia muita estrada e o cansaço já era enorme. Aproveitaria a nova parada para um lanche reforçado e fazer algumas ligações. Enquanto me dirigia ao restaurante o sujeito que me parecia conhecido veio me perguntar se não poderia ajudá-lo a “completar a passagem” pois estava passando por dificuldades. Como estivesse em situação privilegiada dei-lhe algum dinheiro, suficiente para chegar a Campinas e algumas refeições.

Agradeceu-me muito e depois tivemos oportunidade de conversar, pois pegou o mesmo coletivo. Disse-me que morava sozinho e que havia alguns dias um incêndio fizera com que perdesse tudo que possuía, exceto o carro, documentos, alguns trocos e a roupa do corpo. A casa aonde residia “de favor” já teria que ser entregue mesmo, pois seria demolida. É claro que poderia ser pior, pois como estava ausente nada sofreu. Ainda tinha seu emprego, não é? Não… havia sido demitido no mesmo dia pois a empresa passava por uma enorme crise. Menos mal, afinal receberia um dinheirinho. Nem tanto… o dinheiro não era muito e seria usado para terminar de pagar o carro. Ótimo. Com o carro poderia trabalhar ou vendê-lo.

Não também. Há três dias havia deixado as chaves caírem num bueiro e enquanto tentava recuperá-las o veículo (sem seguro) havia sido roubado. Ao chegar à delegacia foi confundido com um foragido da justiça e passou um enorme tempo detido para averiguação. Bem… era jovem e saudável e poderia recomeçar tudo novamente. Não exatamente. Estava se dirigindo a Campinas para tentar tratamento médico gratuito, pois não vinha se sentindo muito bem e onde morava não havia médico especializado.

Mas se expressava muito bem, me parecia ser bastante habilidoso e apesar da aparência “judiada”, apresentando seus documentos não teria muita dificuldade em obter um emprego e se estabelecer nalgum lugar. Bem… enquanto dormia na rua, alguns vândalos deram-lhe uma surra e sumiram com os documentos e os trocados que possuía. Pensei que algum amigo ou parente pudesse acolhê-lo, até as coisas melhorarem. Também não. Mal se conheciam, residiam todos num Estado distante e sem recursos suficientes para auxiliá-lo, mesmo que por pouco tempo. Os que trabalhavam com ele também estavam num “barco furado”.

Gostaria de poder ajudá-lo mas não tinha muitas possibilidades e apenas indiquei possíveis locais aonde poderia obter auxílio. Perguntei-lhe o que faria depois de chegar a Campinas. Veja só… a única esperança que possuía era um primo distante do qual nem se lembrava do nome ou aparência, de apelido Groselha e que possivelmente residia em Itatiba. Com sorte, poderia encontrá-lo e modificar sua vida. Era muita coincidência para não ser a mesma pessoa e cheguei a pensar em ligar para o professor Chuia para saber o que a física determinava para um mesmo espaço ocupado por duas pessoas tão azaradas.

Fiquei em dúvida por um bom tempo mas afinal disse-lhe que era de Itatiba, que conhecia alguém com este apelido e que talvez fosse seu primo. Dei-lhe o endereço e é claro, desejei-lhe…”sorte”. Faz algumas semanas e meu palpite é que o Grosa tenha recebido esta visita. Minha intuição se baseia no fato deque há algumas semanas não tenho notícias dele.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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