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quinta-feira, 25 de abril de 2024

Por Sorte…

No Natal também costumamos nos lembrar daquelas pessoas que ao longo do ano nos foram muito especiais e queridas, e algumas fazemos questão de presenteá-las como gratidão, carinho, admiração. Podem ser clientes, fornecedores, amigos, funcionários, parentes, enfim. E foi para isso que o Groselha me ligou. Como havia quebrado o braço numa partida de bilhar (sic) não poderia dirigir e me pediu para levá-lo nalgumas visitas para entregar lembranças.

A primeira parada foi para entregar uma caixa de cerveja, mas não uma cerveja qualquer. Era uma bebida finíssima, importada, com um lindo rótulo e embalagem de se admirar. Ora, como um presente (delicioso!) desses poderia não agradar? Simples: se o sujeito fosse alcoólatra, a lembrança não só seria recusada como seríamos (literalmente) expulsos da casa pela família, e foi o que ocorreu. Não deu para explicarmos que não sabíamos. Disse ao Grosa que o faríamos (ou pediríamos a alguém) assim que fosse possível.

Refeitos da inóspita recepção, fomos à casa de uma professora do Groselhinha, muito estimada por todos da família. Sabendo que ela era apaixonada pelo cachorro que tinha há alguns anos, comprou uma casinha para ele. Uma casa qualquer, não… Feita de material recentemente elaborado, atóxico, antichama, a prova d`água, personalizada com o nome e a foto do canino. Muito linda! O que não sabíamos é que naquele instante ela estava enterrando o animal no quintal, pois havia sido atropelado pouco antes de chegarmos. Ela se sentiu ainda pior com o presente e tivemos de rezar um terço juntos (como diríamos não?). Terrível coincidência. Aguardaríamos algum tempo até sugerir a ela que adotasse outro animal.

O terceiro presente era para um guarda noturno do bairro que havia se aposentado tinha alguns meses e que adorava a arte do canto. E foi presenteado com um karaokê, mas não qualquer um. Da melhor marca disponível no mercado nacional, era a última palavra em qualidade para quem gostava de cantar. Quando chegamos ao endereço soubemos que ele havia sofrido um acidente e que jamais voltaria a fazer o que mais gostava. Chorou muito e os familiares nos disseram que nossa visita fora inoportuna. Esclarecemos então que o presente poderia ser trocado por algo do gosto dele, bastando ir até a loja, mas por azar foi justamente nessa loja que o acidente ocorrera. Achamos melhor encerrar a visita e deixarmos para presenteá-lo numa outra oportunidade.

Outra parada, dessa vez para a entrega de um livro, e não uma publicação qualquer! Uma edição de luxo magnífica de Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, com capa dura e dourada. Era para o mais novo amigo de Groselha, um sujeito que adorava contar histórias e haveria de apreciar muito aquele livro. Só descobrimos que ele não sabia ler no momento da entrega. Não daria para trocar por outra coisa na livraria e embora os familiares soubessem ler, não se interessavam por leitura. Sugeri ao Grosa que ele ficasse com a cerveja, e o livro fosse para o dependente de álcool. Também não… a religião dele não permitia bebida alcoólica, e assim decidimos deixar para outra ocasião escolher algo diferente para ele.

Restavam ainda dois presentes, mas achamos melhor interromper as entregas (algo nos dizia que aquele dia não estava sendo muito bom para isso). No dia seguinte, Grosa me disse que não voltaria com os presentes para casa. A entrega de um belíssimo exemplar da bíblia seria para um casal de idosos muito queridos pela família, mas um vizinho nos disse que eles se mudaram no dia anterior, e não haviam deixado endereço ou telefone para contato, além de não terem outros parentes na cidade. Ele decidiu que doaria para a biblioteca pública, mas ao chegarmos encontramos o prédio em reformas, sem previsão para a reabertura.

E por último, um DVD para a pessoa que havia conseguido emprego para o Groselha. Sabíamos que continuava residindo no mesmo local, não mudara de religião, tinha DVD player, não era alcoólatra, não havia se acidentado, sabia ler… ou seja, tudo para dar certo, mas não contávamos que ele estivesse preso. Dias antes guardara a pedido de um primo algumas caixas em sua casa, mas posteriormente se comprovou tratar de contrabando e sobrou para ele. Como morava sozinho e não sabíamos quando estaria de volta, adiamos a entrega.

Confesso que fiquei com pena dele. Havia escolhido os presentes a dedo e pago caro por eles. Disse-lhe que apesar de especiais os presentes não eram o mais importante, e sim sua consideração para com aquelas pessoas. As circunstâncias é que lhe foram adversas, e isso acontece com qualquer um (não… não acontece). Mas naquele momento isso não era o suficiente para que se sentisse melhor, e acabou por comentar algo que me desconcertou:

— Sabe, acho que não tenho sorte!

Felizmente pensei rápido e retruquei: quem havia ficado com o prêmio de melhor decoração natalina de residência (o prêmio era por rua) na rua dele?

— Fiquei em segundo, e minha casa é a única na rua, – respondeu.

Mas quem havia decorado a casinha do cachorro, que ficou com o primeiro prêmio?!! Aí, sim, um sorriso… E outra: quem, além dele, já havia encontrado uma cédula de dois reais num cachorro quente?!! Se ele não se lembrava, poderia mostrar-lhe a nota que fora emoldurada ainda com maionese, mostarda e ketchup originais, e estava na parede da área de sua casa. Pronto! Outro enorme sorriso, e ele decidiu deixar os presentes guardados para entregá-los oportunamente. Não seria isso que estragaria seu Natal com um braço quebrado.

Fiquei feliz em poder ajudar, e comigo mesmo pensei em anotar os números daquela nota e apostá-los nalguma loteria, mas precisaria esperar até que as formigas que recobriam o pequeno quadro se fossem. Ainda bem que naquele momento ainda não sabíamos que a cédula havia sido roubada. Levaram até as formigas.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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