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quinta-feira, 25 de abril de 2024

O Silêncio de Beatriz

Assim como seu pai, Joanim sempre fora um carpinteiro de mão cheia e trabalho nunca faltara a ele e a seus filhos, que também seguiam seu ofício. O homenzarrão era também ótimo esposo, pai, vizinho, cristão, cidadão. Ajudava em tudo que fosse necessário para a comunidade, e ao longo do ano encontrava tempo para fazer brinquedos de madeira para o Natal das crianças do orfanato. Carrinhos, caminhões e casas de boneca nunca estiveram a venda, pois tinham as crianças como destino certo. Outra de sua particularidade era a atenção para com moradores de rua ou viajantes, algo um tanto raro em sua cidade, mas que recebiam dele toda ajuda de que necessitassem.

Beatriz, sua única e eterna companheira não ficava muito tempo sem levar até o barracão de trabalho água fresca, café, suas bolachas caseiras preferidas, e não deixava de ver se queria um agasalho. Assim eram muito felizes e tinham os filhos morando no mesmo endereço, embora em casas separadas ao fundo do terreno, que parecia uma pequena colônia de italianos.

Algo obrigatório em seus dias era encerrar o trabalho exatamente às quatro e meia. Após barbear-se e o banho ia para a varanda e até sua cadeira de balanço, onde aguardava Sara, sua neta chegar da escola. A relação entre ambos era sublime. Enquanto a balançava, conversavam, cantavam, brincavam de jogos e se divertiam juntos até o jantar ser servido. A cena fazia parte daquela rua e todos que por ali passavam achavam graça de ambos, na varanda logo após o jardim florido.

Certo dia, Sara não voltou de um aniversário ao qual havia ido com amiguinhas. O caso intrigou e comoveu toda a cidade, e não faltaram voluntários até de outros municípios para as buscas, mas nunca ninguém soube de seu paradeiro. Na residência da pequena menina, nas semanas que se seguiram as esperanças foram cedendo espaço ao desânimo, seus familiares foram se conformando e retomando a vida, ainda que com imensa tristeza. Exceto Joanim.

Nunca mais se ouviu uma palavra daquele homem que jamais voltou ao trabalho, à igreja, à mesa para as refeições em família, aos cuidados com o belo jardim. Seu dia a dia se resumia a ficar na varanda, na expectativa de que sua bambina retornasse. Assim, sua atenção se voltava somente para veículos que estivessem parando na frente da casa ou viaturas da polícia que com alguma regularidade ali passavam em suas rondas, mas a família nunca recebeu qualquer notícia.

Quase todos que o conheciam manifestaram solidariedade e procuraram cada um à sua maneira tirá-lo daquela prisão em que se encerrara. Em vão. Com o passar dos anos, o homem encorpado e forte foi se definhando de saudade, e sua longa barba fazia com que aparentasse ter ainda mais idade. Só continuara vivo porque era muito bem cuidado por sua esposa, que entendia o que se passava com ele, ficando horas ao seu lado, acariciando seus cabelos, confortando-o.

Falava muito com ele, mesmo tendo a certeza de que não ouvia nada do que dizia. Muitas vezes passava a noite na varanda, então ela o cobria com uma manta, aquecia seus pés, e logo de manhã lhe levava uma grande xícara de café e uma fatia de pão caseiro com manteiga. Muitas vezes era só o que comia ao longo de um dia.

Numa manhã, um andarilho passava em frente sua casa e pediu permissão para entrar no quintal, tomar água e sentar-se um pouco à sombra. Joanim apenas fez um vago gesto autorizando sua entrada. O desconhecido saciou sua sede e a de um cachorro que o acompanhava, sentou-se num dos degraus da varanda e conversou bastante, mas uma vez mais ele não ouvira uma palavra sequer, exceto o que o estranho disse ao partir, e ao entregar-lhe como retribuição pela acolhida um amassado pacotinho com sementes de flores que tirou do único bolso do velho e esburacado paletó. Disse que para quem não acreditava, era só semear, e no dia em que as visse florescendo, seu desejo se realizaria.

Joanim aceitou o pequeno embrulho e ficou vendo o estranho ir embora. Não sabia por que perdera o restante da fala do misterioso homem, ou por que havia ouvido somente aquele trecho da conversa. Como poderia aquele viajante saber de algo se não trocaram uma palavra sequer… e que sementes seriam aquelas? Mas não custaria nada tentar. Afinal, sua espera havia sido infrutífera, assim como as promessas, orações, novenas, e o já improvável milagre. Há muito não pensava em Deus, nos santos de quem fora devoto, e também não acreditava na polícia ou autoridades. Ninguém havia lhe devolvido sua netinha.

Ainda se demorou pensando no que fazer, mas finalmente decidiu-se. Levantou-se e caminhou com dificuldade. Os longos anos inativos o tornaram uma sombra do que já fora um dia. Em seu quarto abriu a única gaveta da cômoda que possuía chave, e ali guardou as sementes, trancando-a em seguida. Voltou para a frente da casa, ligou a mangueira e molhou demoradamente a terra seca, esquecida. Surpresa, Beatriz que não havia visto o andarilho o acompanhou, sem nada lhe perguntar ou dizer.

Na manhã seguinte, Joanim foi até o velho barracão onde seus filhos ainda não haviam iniciado o trabalho do dia, procurou lentamente entre as ferramentas abandonadas, e acabou por encontrar uma enxada que continuava afiada porque um de seus vizinhos a utilizava de vez em quando e a devolvia com o corte ideal. Em seguida pegou as sementes que havia guardado, e mal conseguindo manusear a ferramenta preparou a terra ainda úmida para a semeadura, depositando vagarosamente o conteúdo do pacotinho, espalhando-o demoradamente.

Naquele dia Elvira lhe fez curativos nas mãos, que há muito não sangravam ou tinham bolhas. Ele ficara exausto, mas tinha um ar de satisfação, de trabalho feito, de missão cumprida. E ela ficou agradecida. Talvez ele estivesse voltando à vida. Era um começo.

Algumas poucas semanas se passaram sem que mais nada de diferente ocorresse, e o período de chuvas dispensou novas regas. Numa noite, Beatriz não dormira. Algo lhe deixara angustiada, impaciente, tensa, mas finalmente amanheceu e já se ocupava das tarefas do dia. A primeira, claro, preparar o café e levá-lo para Joanim, que uma vez mais permanecia na varanda.

Antes de subir a escada, notou que as sementes que ele havia plantado haviam germinado e já despontavam na terra. Não sabia que flores eram aquelas, mas finalmente aquele jardim voltaria a ser como antes, e quem sabe seu velho recuperasse ao menos parte da alegria de viver. Esse era seu maior, único e verdadeiro desejo.

Encontrou-o com o corpo já rígido, com a manta com a qual o cobrira na noite anterior, mas tinha em sua expressão um leve, porém magnífico sorriso. Desse dia em diante, nunca mais se ouviu uma palavra de Beatriz.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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