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quinta-feira, 25 de abril de 2024

O cachorro Apache

Quando a família decidiu que teríamos um cachorro em casa, a primeira coisa que fiz após sair do trabalho foi comprar uma placa com os dizeres a “Cuidado! Cão Feroz!” Quando o cachorro chegou em casa, a primeira coisa que fiz antes de ir trabalhar foi guardar (e para sempre) a placa no porão.

Apache não tinha nada de feroz, guerreiro, corajoso ou algo assim. Era de porte pequeno, pelo curto, orelhas caídas e sem cauda. Algo que se aproximava de um pincher, com traços de beagle… Seu dia a dia se limitava a acordar na hora do almoço e do jantar, espreguiçar-se demoradamente, fazer necessidades, alimentar-se, beber água e… voltar a dormir. Aliás, nunca tive certeza da cor de seus olhos.

Jamais se incomodou (ou acordou) com visitas, festas, fogos, trovões, campainha, telefone, latidos de outros cães, enfim… Também nunca se interessou por brinquedos, colo, passeio, ou rua. Mas o veterinário que foi nosso vizinho disse que ele era sadio, e isso é o que importava. Como dormia o tempo todo, não era um cão de guarda e nem um cão de companhia, mas era de estimação.

Houve quem dissesse ter ouvido nalgum momento um latido dele, mas como não havia comprovação isso foi considerado lenda (nem tão viva). Era um animal do qual não tínhamos histórias para contar, mas após um bom tempo houve sim um episódio muito estranho com ele. Uma vez ao ano, eu ia ao sítio de parentes buscar laranjas para fazer doce. Em todas as vezes, coloquei Apache (dormindo) no banco do carro, e lá chegando, mesmo abrindo a porta do carro ele continuava dormindo, e voltava assim até em casa. Aí eu o colocava (dormindo) de volta em sua cama.

Numa dessas viagens, já de volta do sítio me surpreendi com seu comportamento. Repentinamente, levantou-se latindo sem parar e coma a as patas no encosto do banco, como se tivesse visto algo atrás do carro. Ao mesmo tempo, vi pelo retrovisor um veículo vermelho que vinha em alta velocidade, fazendo uma ultrapassagem perigosíssima num ponto crítico da estrada. Só pude ver que o motorista era duplamente irresponsável, pois no banco traseiro havia um garotinho em pé, olhando para trás. Foi muito rápido, mas vi que possuía penduradas no pulso direito uma porção de fitinhas coloridas.

Apache acompanhou a passagem do veículo, mas sem vê-lo, porque mesmo em pé era de baixa estatura, e continuou latindo e chorando de forma desesperada. Sinalizei e parei no acostamento. Pensei que talvez tivesse sido picado por uma abelha, mas a impressão mesmo era a que ele havia sido atropelado e estivesse sentindo dores horríveis. Procurei acalmá-lo, o que custou a acontecer, pois continuou chorando por muito tempo. Liguei para o veterinário, e ele disse que poderia vê-lo, mas também não fazia ideia do que pudesse ter acontecido.

Já estava escurecendo quando voltei para a estrada. Vários carros sinalizavam com faróis algo de errado, possivelmente animais na pista, ocorrência muito comum naquela região. Logo vi que se tratava de algo mais sério, e nesse momento Apache se levantou novamente, dessa vez com as patas na porta do passageiro. Aparentemente, sua atenção foi chamada do lado do acidente, mas ele nada podia ver, pois não alcançava a altura do vidro. Dessa vez ficou em silêncio. Policiais orientavam a lenta travessia da estrada no trecho do acidente. Assim pude ver que era o mesmo veículo vermelho que havia se acidentado.

Ao lado do carro três corpos estavam cobertos, inclusive o de uma criança. Soube, porque uma de suas mãos com as fitinhas, estava descoberta. Apache, pela primeira vez na vida, veio em silêncio ao meu colo. Foi um instante desconcertante. Parei novamente no acostamento e ali permaneci algum tempo, tentando me refazer do choque e entender o que estava se passando à minha volta. Também não contive as lágrimas.

Quando finalmente chegamos ao veterinário, ele o examinou e disse que não havia nada de errado com o “Forte Apache”, como costumava chamá-lo, e que às vezes temos de aceitar o inexplicável. Também recomendou que fôssemos dormir, já que minha aparência era pior que a do cachorro. Achei que isso não seria difícil para o cãozinho, mas para minha surpresa ele também passou a noite acordado.

No dia seguinte, li a notícia no jornal. Era um casal com um filho que residiam muito longe de nossa cidade e que voltavam de uma festa. Nos dias seguintes Apache recebeu todo o carinho e atenção da família, mas demorou para voltar a se alimentar e dormir como tão bem fazia.

Os anos se passaram e aquele havia sido o único evento em que ele agiu de forma estranha, até que o telefone tocou e imediatamente se levantou e olhou para o aparelho. Numa casa que mais se parecia com uma central telefônica isso era espantoso, pois nunca havia acontecido. Atendi e continuou prestando atenção… Era uma mulher que viria morar na casa ao lado, e que estava em reforma há semanas. Perguntou se os trabalhadores poderiam deixar a chave em nossa casa, pois ela chegaria com a mudança em dois dias e ganharia tempo se não precisasse ir à imobiliária. Claro, sem problemas. Desliguei e ele voltou à cama.

No dia em que disse que chegaria, acordamos com… (acredite se quiser) latidos insistentes do Apache, que estava próximo à porta de entrada da casa. Não tardou e a campainha foi acionada. Era a nova vizinha, que chegava com a mudança e veio pedir as chaves. E bastou abrir a porta para Apache correr e fazer a maior “festa” para a filhinha da nova moradora.

Temos de admitir: ficamos todos enciumados porque além de nunca termos tido aquela retribuição, daquele instante em diante ele só voltava para casa para… dormir, passando o dia todo na vizinha e brincando incansavelmente com a menina. Eram inseparáveis! O que poderia haver ter de tão especial entre eles, sendo que nunca tinham se visto? Seria, talvez, pelas fitinhas coloridas que ela tinha pendurado num dos pulsos?

Ah, sim… os brilhantes olhos dele são castanhos claros.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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