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quinta-feira, 25 de abril de 2024

Batismo de Fogo

Poucos dias depois de uma cirurgia nos olhos, Groselha me convidou para acompanhá-lo a uma cidade de Minas, aonde seria padrinho de batismo. Lembrei-me de outras jornadas, todas desastradas e pensei em dizer “NÃO”, mas deixá-lo ir sozinho seria covardia (se ele estivesse enxergando bem já seria). Chequei: a meteorologia não previa chuva por (pelo menos) cinco dias; havia ônibus direto de Campinas para a cidade e o endereço ficava no centro, a um quarteirão de onde desceríamos. A margem de segurança, portanto, era razoável. De fato, a viagem (embora longa) transcorreu (muito) tranquila. Estaríamos assim finalmente nos libertando daquela tola impressão de que o azar o (ou nos) acompanhava.

Chegamos. Ao descer do ônibus, Groselha pisou na cauda de um cachorro. O “pega” foi feio até algumas pessoas conseguirem conter o animal. Pálido, mas garantindo que “só estava ardendo”, Grosa tranquilizou a todos. Agradecemos e seguimos em direção a casa dos familiares aonde sua esposa, inclusive, nos aguardava. Parei para amarrar o calçado enquanto Grosa ainda deu alguns passos à frente. Foi então atingido (na testa) por uma linha com cerol. O corte foi grande e em poucos metros ele já somava um grande susto, uma camisa manchada; uma calça rasgada, um sapato com marcas de dentes e um corte. Mas até aí, dentro da (sua) normalidade.

Uma bondosa senhora nos acolheu em sua casa e providenciou um curativo. Não demorou e estávamos no endereço. Fomos então avisados por um sujeito que eles haviam se mudado logo pela manhã, como previsto, para um sítio nas proximidades. A família iria comemorar então, o batizado e a nova moradia de uma vez. Por sorte (?) o sujeito iria passar por lá e nos daria uma carona. Não era tão longe, mas o que havia de pó na estrada impressionava. Ao descer da carroceria do caminhão Grosa escorregou e caiu sobre o braço esquerdo. O próprio homem nos levou ao hospital (na cidade vizinha) onde ficou constatado: braço quebrado. Feito o “embrulho”, voltamos de táxi.

Pudemos enfim encontrar a todos, inclusive o futuro afilhado… com 15 anos e quase maior que o padrinho. Durante o almoço nova correria: Groselha ficou com um espinho de peixe na garganta, só removido no mesmo hospital. Já à tardinha aceitei “bater uma bola” com as crianças. Grosa não resistiu e quis participar. “Jogaria no gol” e estava divertido até uma bolada derrubar a trave (exatamente) sobre o corte em sua testa.

Perdemos o goleiro e encerramos o jogo, mas antes de sairmos do campinho um marimbondo picou… adivinha quem… que ainda daria uma cabeçada no (único) orelhão existente na cidade. À noite (por segurança) não saímos. Pela manhã, haveria o batizado seguido de um (senhor) almoço e seguiríamos à tarde para Campinas, sendo que sua esposa ficaria mais uma semana com os parentes. Como Grosa acordou primeiro já foi acender o fogão à lenha, onde queimou a mão direita. Mais tarde seria uma vela acesa durante toda a cerimônia quem iria torturá-lo e na saída da igreja uma queda com fratura num dos joelhos. Já rumo a Campinas alertei-o para que tomasse cuidado com o passageiro da frente caso este reclinasse a poltrona, mas não houve tempo e o tal joelho foi novamente atingido.

Pensei em pedir uma ambulância para esperá-lo na rodoviária, mas tudo correu bem. Restava ainda o trajeto até Itatiba e como faltavam 40 minutos resolvemos tomar um lanche. Ao atravessar a rua notei que estava só. Olhei do outro lado e lá estava o Groselha, tentando tirar um dos pés preso entre as grades de um bueiro. Com a demora, resolvi ajudá-lo e o jeito foi deixar o sapato cair…

— Estava mordido mesmo – disse a ele, que não gostou nada da observação.

No caminho, o ônibus (surpreendentemente) quebrou. Quase uma hora depois, um conhecido que passava pelo local nos ofereceu carona e a sorte começava então a voltar, mas não para o Groselha que prendeu a mão na porta ao fechá-la. O conhecido nos levou ao hospital.

Cortado, mordido, picado, batido, queimado, espinhado, inchado, mas medicado, deixei-o em sua casa, de táxi. Dias depois o encontrei (vivo). Disse-me que, naquele dia, (ainda) havia esquecido a chave da casa em Minas e que, com raiva, quis derrubar a porta. Não só os vizinhos chamaram a polícia pensando tratar-se de arrombamento, como machucou o pé descalço. A própria polícia o levou (de volta) ao hospital e depois, à casa de seus pais. Fico imaginando se ele é (afinal) batizado.

Autor:

Miguel Arcangelo Picoli é autor do livro Momentos (contos) e Contos para Cassandra (em homenagem à escritora Cassandra Rios).

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