21 C
São Paulo
sexta-feira, 26 de abril de 2024

O fundo do poço

Trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=jeLHDlBkipg


Você, você mesmo, homem, macho, misógino, manipulador. Você tentou me dominar, você usou de todas as estratégias que aprendeu a vida toda para me controlar (seus cabelos brancos faziam questão de mostrar). Inclusive me ensinou várias delas, mas mal eu sabia que era para me distrair e achar que estava sob controle (eu estava cercada, você que dominava tudo).

Você me fez acreditar que eu podia dominar o mundo. Uma menina ingênua, puritana, virgem, cheia de máscaras, que sonhava em ser livre. Emprestou-me livros, encheu o meu ego, ensinou tudo que sabia, contou segredos de estado. Você conquistou minha confiança e de todos ao meu redor, me deu uma chance, confiou no meu talento, viu luz em mim. Fui sua discípula naquela agência.

Até que você tocou em mim sem permissão. Sim, por trás, nem te vi chegar, quando me dei conta suas mãos estavam nos meus seios, depois na minha vagina, depois na minha alma. Eu tentei tirar suas mãos, eu disse para você parar, mas quanto mais eu pedia, você segurava mais forte meus peitos. Paralisei!Quando você disse que ia

ao banheiro para gozar pensando em mim, eu só conseguia chorar, uma cachoeira saiu dos meus olhos (nunca vi tanta água sair de mim). Chorei como uma criança. Antes que você voltasse as enxuguei como se nada tivesse acontecido, e voltamos a escrever nosso roteiro.Não tocamos no assunto, não toquei no assunto. Nesse dia fui ao teatro. Quando as luzes se apagaram, eu só conseguia chorar, chorar e chorar (ninguém iria notar).

Na outra semana eu olhei no espelho e disse: VOCÊ VAI CONSEGUIR ESQUECER! Voltei ao trabalho como um robô e com “amnésia”. Você se fez de desentendido e voltou às suas estratégias e manipulações. Logo mais, começou a falta de respeito, você falava de pornografia, você dizia que sonhava me vendo gozar com seu oral, você me contava sobre seus desejos, suas vontades, seus fetiches, todas as vezes que eu ia mostrar um texto meu.

Você sempre reparava nas minhas roupas por mais que elas fossem abaixo do joelho, você ainda conseguia me imaginar sem elas sem perder a chance de me olhar com aquela cara nojenta. Até que você começou a criticar minhas roupas, meu cabelo e meu modo de pensar. Dava dicas de como parecer mais adulta e passar respeito, já que eu nunca iria conseguir se continuasse me vestindo como uma criança, com vestidos rodados e laços no cabelo.

Um dia você bateu na minha bunda, no outro me coagiu, logo mais estava gritando comigo, no outro me disse que eu não seria nada sem você. Eu só queria aprender e andar com as minhas próprias pernas. Eu só não conseguia sair daquele ciclo, estava presa!

Sem me dar conta, quando percebi já tinha me perdido pelo meio do caminho, era só uma carcaça ambulante. Então criei um blog para me reconectar comigo, para me lembrar todos os dias quem sou. Mas já era tarde demais. Perdi o prazer de levantar da cama, de ir trabalhar, de estudar, de me arrumar, de dá bom dia, de sorrir, meu corpo doía, eu rastejava pelas ruas e chorava todo dia sem motivo.

Comecei a planejar formas de me matar, meus sonhos não existiam mais, eu não me importava mais com ninguém, com nada, eu só queria acabar com tudo. Comecei a ter insônia, logo a falta de apetite, depois a fome sem freio (isso foi acontecendo aos poucos durante dois anos, até ficar cada vez mais intenso).

Quando consegui enxergar que todo esse tempo eu fui manipulada, através das inúmeras estratégias que você utilizava, eu não conseguia mais dirigir palavras a você, nem ser educada. Eu sentia nojo do teu perfume, que tomava toda a sala quando eu abria a porta. Tinha vontade de vomitar quando te via. Não mostrava mais nenhum texto para você. Não dirigia mais nenhuma palavra a você. Saía antes da hora do almoço, e da hora de ir embora e só subia quando já tinha muita gente na sala. Comecei a me esconder, e a evitar você.

Isso feriu seu ego. Você começou a me coagir, a gritar comigo, a bater nas coisas para me colocar medo, a me perguntar porque não falava mais com você e eu só ficava calada e assustada. Nunca te dei nenhuma explicação, nem mesmo quando pedi demissão.

Mas você ainda tentou, você se aproximava e tocava nos meus ombros numa distância que seus dedos conseguiam encostar nos meus seios (eu tirava, levantava, me mexia). Acho que foi por isso que meu salário nunca aumentou. Eu tinha capacidade, eu evolui, dava conta de todos os meus clientes, escrevia textos incríveis, recebia parabéns e tapinhas nas costas, mas eu não dei pra você não foi mesmo?

Até que eu acordei um dia com coragem para me matar. Mas uma queda no banheiro me impediu de sair de casa durante uma semana. Isso não evitou as vozes na minha cabeça e os pensamentos dos mais piores “você não serve pra nada” “você não devia estar viva” “ninguém te ama” “ninguém se importa” “você devia morrer” “sua incompetente” “desgraçada” “monstro” “teu pai nunca te quis, porque mais alguém vai te querer” “morre” “se mata” “você é horrível” “você não presta” “você é feia” “ridícula” “burra” “lixo”. Eles só aumentavam a cada dia que passava, os sintomas corporais e de humor começaram a me dominar, eu não tinha mais controle sobre mim.

Fui para outro emprego, mas eu já estava muito doente para seguir a vida. Até que eu tentei me matar, e fui demitida. Depois tentei de novo. Eu vivia dopada, tomava remédios que me apagavam por três dias seguidos, e quando acordava não conseguia pensar, nem falar, depois de um tempo nem enxergar mais. Eu babava acordada. Os sintomas duravam 24h e só pioravam. Enjoos, angústia, frio na barriga, febre, insônia, pesadelos, muita fome. Tudo era cinza. Eu não via mais graça nas flores, nem no céu azul, muito menos nos meus sapatos dourados ou nos meus laços.

A depressão fez morada, a ansiedade adorou e meus traumas bateram palmas. Tudo ferveu e veio à tona. Todas as dores acumuladas durante toda minha vida (que não foram poucas) se juntaram, me fizeram de salão e prepararam uma grande festa.

Quando ele me tocou, quando ele me dominou, quando ele me humilhou, ele foi retirando pedaço por pedaço até eu desaparecer.

Hoje, 6 anos depois, isso ainda me dói muito e suspeito que continuará doendo pelo resto da vida. Quando uma mulher é assediada, estuprada, abusada, é como se tivesse que conviver com um braço a mais pelo resto da vida. E o que relatei não é muito diferente do que as 26,5 milhões de brasileiras passaram em 2021, vítimas de assédio (Dados do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, publicado em 2021 por  SUXBERGER). E continuam passando.

Por muito tempo me considerei fraca por ter aguentado tanto tempo, e ainda ter pagado caro por isso. Mas depois de um tempo percebi que fui muito mais forte do que eu imaginava que podia ser. Pensei e repensei diversas vezes sobre publicar, mas eu escrevo sobre mim, sobre minha história, sobre o que é de verdade. Se meu texto alcançar mulheres que estão passando por isso, e de alguma forma ajudá-las a sair desse limbo, já terá valido a pena a exposição. Pois, aprendi com grandes escritoras que ser de verdade é o mais importante!

Autora:

Juliana Sena, Redatora Publicitária – Escritora no blog: O Mundo de Ju Wix. Gosta de escrever crônicas sobre o seu mundo: onde tudo é possível e toda dor é sublimada. Siga seu trabalho nas redes sociais através do Instagram: @juprimavera_

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Leia mais

Patrocínio