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domingo, 21 de abril de 2024

Aquela visão tão clara…

Caminhava por aquelas largas e vazias avenidas que exalavam uma mistura do asfalto e da grama, molhados pela constante chuva, e em falar de chuva, hesito dizer há quanto chove sem intervalo, o que coroa a imensidão deste lugar repulsivamente escuro. Caminhava em direção a minha casa, em direção mesmo à nova vida, novamente, como pareço ter feito desde o sempre. Com “nova vida” quero dizer ter chegado nesta outra terra silenciosa, mesmo mórbida é o que pode dizer-se desta, que agora, como que de antigos encontros, subitamente reconhece-me e, ternamente, sente meus pés fincados aqui, no mesmíssimo caminhar. Sem saber dizer bem de onde voltava ou mesmo para onde ia, o fazia ao brindar o fastio que acompanhara-me e, se devo ser franco, poupara me do todo do mundo, da vida mesma, da vida vivida. Eu sou a sombra, a linha desconcertada ou, o próprio desconcerto. Eu sou a maior das contradições, sou o vazio da relação de tudo que é nulo e friamente escapa do que se pode, e mesmo do que não se pode dizer. Voltava para o lugar que estranhava, como sempre tudo estranhei, ou pode-se – e talvez mais justamente – dizer que ia para casa, àquela cujo desconforto engolia-me o intestino, cujo chão lembrava-me da esterilidade que escapa à luz, ao calor… à vida.

Havia acabado de guardar o telefone em meu bolso, que já nem sentira ao tê-lo levado até lá. Não somente meu braço cansado e definhante já cedia, mas todo o meu eu, eu mesmo! Aquele gelo que brutalmente rasgava e perpassava as folhas rígidas daquelas gigantes árvores que, docemente, tentavam poupar-me da absoluta ausência que cobria me, daquele temeroso céu, ruidoso, violento… aquele gelo que sentira-me fundo nos ossos, numa desgostosa relação de inimizade, de ressentimento, causara-me dispêndio, desistência, ainda que eu continuasse a caminhar, e sem saber para onde ou do porquê. Guardara o telefone porque ouvia a derradeira nulidade sussurrar-me que já perdia-me novamente do caminho, que não posso dizer-vos qual é, antecipando-vos que nunca eu mesmo compreendi-o minimamente. Asseguro-vos, isto é uma confissão, plenamente insincera, rude, terrível, ainda que a minha confissão. E devo permitir-me o direito de almejar direcionar-me um algo no mundo e, consequentemente, fantasiar-me como um.

Ouvira sua doce voz, de textura macia, sempiterna… Sentira suas mãos de pleno calor apalparem-me as minhas, e eu bem sabia que era, ali mesmo, coroado, naquele exato instante, por tê-las às minhas, e podia ter a certeza de sua ternura e compreensão, pois diziam-me num pranto o que jamais pudera saber em minha existência, ou se melhor posso dizer-vos, minha inexistência!, eu podia saber que o que transmitiam-me era o tãodesejado algo que procurara pelo sempre. Sua radiância impedia-me uma clara imagem; não machucava-me os olhos, impedia-me como não poderia jamais um tabórico e luminoso mistério ser consumado pela contradição e pelo descaso. Suas mãos tiravam me de quaisquer mundos, e adornavam o insolúvel mistério do olhar que nunca veio, se é que vem… Dissipam-se agora o gelo e o acinzentado, rompem-se as ruas e avenidas, formam-se fendas de incalculável profundidade, e continuo a caminhar, neste eterno caminhar. Eu tive e, juro-vos que tenho ainda, confiança, a mesma da criança que, caída e machucada, tem o olhar compreensivo de sua mãe, fitando-a com mansidão, e que logo dá-se conta de que tudo está bem… confiança e certeza de incomensurável plenitude, e que realizaram-se naquelas mãozinhas joviais e luminosas. Eu tremia terrivelmente, e não podia – à medida que nossos passos organizavam-se ritmicamente – ousar olhar àquela aparição diretamente, eu sabia e, mais do que nunca, sei que não pude fazê-lo por querer-se que aquela imagem conservasse-se para sempre luminosa, intocada. Ali, ainda naquelas longas avenidas, vislumbrava o rubor naquela pele, naqueles pezinhos que acompanhavam-me desengonçada e perfeitamente, naquela perfeição inatingível, no mistério que não pude jamais alcançar; eu não posso nem mesmo repetir-vos a eufônica fala que, ao ter sido direcionada a mim, naquele sussurro extasiante, empurrou-me a um profundo transe, e que esquentou-me a alma assim como à face direita minha, que gozava da alegria de seu hálito, da harmonia que surgia daquela boquinha como todas as belezas e, mesmo a vida, surgem pelo Criador. Confesso ter entregado-me à paralisia interna, ao fogo e ao arder de meu coração, e segurei aquela mãozinha como protege um pai a um filho em apuros, como uma mãe entrega-se a toda dor do mundo pela criança que lança-a aquele olhar que apazígua e dá sentido a tudo, segurei-a pela mão como as lágrimas dos aflitos são enxutas e seu sofrimento dissipado, porque a estes Deus ama incompreensivelmente.

Pude enxergar minha queda como reflexo daquela aparição que, agora então, começava a dissipar-se lentamente, e jurei criar coragem, ali, em instantes, para penetrar-lhe os olhos e tomá-la para o meu sempre. Eu temia-a com todo meu eu, e não podia movimentar-me – o pouco que fosse – para tocá-la e dizê-la que ficasse, e que nos tornássemos um. É verdade o que quer que podeis dizer sobre mim; ao inferno minha covardia e terror, eu não podia ver-me senão a contemplar a tragédia que tomava-me qualquer fôlego, e arrancava-me os ossos bem como minha carne corroía-se pelos vermes de minha maldade. Sabia e bem sei que não teria novamente em vida este calor, não qualquer, mas este. A angústia destroçava-me pela garganta, não podia nem mesmo berrar a qualquer desalmado que por ali passasse, e clamar-lhe que não deixasse-a ir. Já não restava mais nada, a não ser aquela voz que já dissipava-se em confusão em minha mente! Eu não podia fazer mais nada, e todo o ar já havia sido expelido, o horror consumia-me, eu já não tinha mais forma, afundava, caía, depressa, muito depressa, e já não podia mais enxergar senão a desgraça, o grito, a escuridão e o inferno!

Sentia meus pés e meus braços. O ar gelado penetrava-me os pulmões, e eu podia dar-me conta da grossa e velha roupa que protegia-me do frio. Estava sentado num velho sofá, estranho a mim, ainda que chame-o de meu, como tudo neste mundo ainda me é estranho e, ainda assim, meu. Abri os olhos e deparei-me com aquela parede levemente marcada, com a mesa bagunçada e já sem brilho algum, assim como toda coisa que, naquela primeira mas longuíssima vista, já perdia-se de mim. Um sonho, não mais que isso. Um sonho. Já não há mais tempo, já não me resta nada, como nunca restou-me. Estou atrasado, as horas passaram rápido demais, e fiquei aqui, novamente. Devo voltar. Eu tenho de ir, não posso esquecer-me de caminhar, não devo jamais parar, mesmo que sem saber para onde ou o porquê de partir.

Autor:

Felipe Bertoldo

3 COMENTÁRIOS

  1. Me faz lembrar dos poucos e compassivos momentos de zelo que tive durante a debutancia. Uma ação tão simples, como o caminhar, foi descrita de maneira detalhada, como algo “maior”. A chuva, como algo obscuro. Os sentimentos implícitos são revelados com maestria. Absolutamente todos os detalhes deste escrito – que mais se compara com uma obra do que com um texto – têm beleza! Por fim, a forma como o suposto ser feminino foi emoldurado me encanta: uma doce, meiga e tímida moça, digna de diminutivos. Que orgulho tenho deste jovem escritor, filósofo, de coração puro e terno, que consegue ver inúmeros detalhes em coisas que passam despercebidas durante nosso dia-a-dia, e dar vida à crônicas extensas!

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