No seu recente livro, A Sociedade do Cansaço, o filósofo coreano Byung-Chul Han nos mostra como a sociedade atual, nos moldes do neoliberalismo, transforma cada um de nós em senhor e escravo de si mesmo.
O que caracteriza a nossa sociedade, no momento atual, é a existência de uma pressão externa, que nos impõe uma vigilância interna para produzir mais e mais. É imposto a nós um modelo no qual temos sempre que ser mais produtivos, e se não conseguimos, somos levados a nos sentir como os únicos culpados do processo. Não nos é permitido questionar todo o processo, mas apenas individualizar a nossa incapacidade e culpa. A aceitação do modelo em questão é de alguma maneira, e em alguma parte dos casos, glamourizada pela falsa teoria da liberdade individual, de ser seu próprio patrão, e de poder trabalhar quando queira e como queira. O processo de uberização é talvez o maior exemplo. Dezenas de vezes observei a grande mídia vendendo essa ideia da falsa liberdade laboral. É o amo que a si mesmo chicoteia.
No início da pandemia por aqui, em 2020, vi um de nossos filósofos atual de renome, Leandro Karnal, afirmar que a mesma iria expor de uma maneira mais premente os vícios (defeitos) e virtudes, individualmente e da sociedade como um todo. Decorrido um ano, e, infelizmente, mais para frente parece que irá piorar. O cansaço gerado pela pandemia, terá atingido a todos mais profundamente, apesar de uma falsa impressão, quando tudo começou, que a permanência em casa seria um descanso.
De início, o que nos foi vendido como uma virtude, o teletrabalho, caminha para se transformar num grande vício (que nos faz mal). Já está sendo documentado que as pessoas em teletrabalho estão a trabalhar muito mais tempo que antes. Também se mostra muito mais cansativo, pois carece de rituais e estruturas temporais permanentes. Rituais são processos de encenação e incorporação corporais. É o já conhecido “o corpo fala”, que as mães e pais sabem muito bem na dinâmica de criação dos filhos. O teletrabalho e a comunicação digital enfraquecem esse vínculo, criando uma comunicação decorporificada. O mesmo acontece com as crianças fora da escola.
O ser humano é um ser social, e ao longo dos últimos tempos, estamos cada vez mais nos afastando e tornando o individual acima do coletivo. Um claro exemplo, pode ser notado pelo simples fato de não conhecermos, e mal falarmos com o nosso vizinho. Porém, há poucas décadas, conhecíamos todos os moradores da nossa quadra. Essa completa comunicação pessoal está sendo exaurida, e sendo substituída por uma comunicação de mídia que exacerba o ego, muitas vezes com fantasias de fotos e fatos fora da realidade, destruindo o tecido social e a comunicação.
Dois simples e não perceptíveis comportamentos viciosos, característicos da nossa sociedade, mesmo antes da pandemia, tornaram-se mais fortes durante a mesma, e, provavelmente, ainda ficarão por mais tempo. A busca por uma vida mais longeva faz com que percamos a capacidade de valorizar a qualidade da mesma. Sacrificamos o prazer da vida, em busca da sobrevivência. Com a pandemia, essa busca ocasionará uma aversão maior ao contato com o próximo. Como exemplo, um amigo, que mora numa pequena cidade, contoume recentemente, que as pessoas mudam de calçada para não cruzar com o outro, com medo de contágio. Não quero dizer que o distanciamento não seja necessário no momento, mas como isso virá a influenciar comportamentos na sociedade no pós-pandemia.
Já a procura da beleza eterna se acirrou também na pandemia, e tornou-se mais evidente ao se aumentar o tempo gasto no uso de dispositivos eletrônicos, os quais projetam, na tela do aparelho utilizado, a imagem do próprio usuário. Encontra-se facilmente rugas, marcas onde “não deveriam” estar, e assim fatos que deveriam ser encarados como naturais, do passar e apreciar a vida, são vistos como “degradação”, causando desconforto e mal-estar em si próprio. A busca da beleza eterna causou um aumento na procura de procedimentos estéticos nesses tempos. É a insatisfação consigo mesmo e a cobrança laboral levando a sentimentos negativos.
Em todas as épocas, a humanidade enfrentou doenças e catástrofes. Atualmente, a pandemia da Covid19 nos chama muita atenção, e está em pauta, mais ainda no nosso país, com triste e crescentes recordes negativos perante o mundo. Entretanto a doença do nosso século, os transtornos neuronais, já estava presente, e se agravará durante e após o controle da pandemia, pois terá tido o reforço de toda a problemática que a doença nos trouxe. A taxa de suicídio, que é uma catástrofe, embora desconhecida, atinge mais de 700 mil mortes anuais no mundo, e já mostra aumento em países de bom nível econômico e social, com pandemia controlada, como a Coréia do Sul. Pode-se antever o que poderá ocorrer em países com menos estrutura social e de saúde como o nosso.
À sociedade do cansaço, da extenuante cobrança produtiva, se agrega o vírus do cansaço que remete a alguns dos complicadores já descritos. A esperança que podemos ter é que esse possa ser um ponto de inflexão, que a sociedade reanalise o modo de vida atual, pois se presume que pandemias continuarão a acontecer, e que assim nos sujeitemos à completa mudança desse modelo.
Excelente texto… E como falou no começo, as pessoas em home office estão trabalhando muito mais, isso porque, dependendo do cargo, você trabalha no horário que achar melhor, e isso acaba abrindo alas para que as pessoas te contatem a qualquer momento, logo, as vezes períodos que você determinou que descansaria, está a atender as pessoas.
Henrique, o que você falou ocorre mais do que se imagina. A raiz desse mais novo processo de desgaste do funcionário está na reforma trabalhista do governo Temer.
Realmente, com a pandemia as pessoas passam muito mais tempo presos aos celulares, procurando imperfeições, se baseando em perfeições muitas vezes ilusórias, fakes. E uma hora cansa, se cansa de tentar melhorar sempre, cansa de ficar atrás de tendências…
Pois é Ana, e gera mais e mais neurose.