“No presente, a mente, o corpo é diferente e o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Apesar da declaração expressa nas letras de Antonio Carlos Belchior em sua canção Velha Roupa Colorida, gravado em 1976, o passado nos parece, mais que nunca, uma roupa que insistem em remendar e tornar a usá-la, cada vez com maior desfaçatez! Já a mente e o corpo que, embora quiséssemos que no presente fosse diferente, não tivera sequer tempo de crescer e expandir-se de maneira saudável.
Após um breve suspiro democrático (vacilante, deve-se admitir, dado aos camelos engolidos na forma de perseguição aos muçulmanos Rohingyas, bem como a abertura constitucional para possível intervenção militar) a República da União de Myanmar vive na presente data um cenário que não lhes é distante, tão próxima que talvez voltando-se e lançando olhar por sobre os ombros, ainda se veja de relance seus atos de protesto. Após 49 duros anos de Ditadura Militar, regime este que lhes permitiu experimentar toda sorte de abuso de liberdades individuais e coletivas, Myanmar engatinhava em sua experiência democrática, que fora interrompida de forma abrupta no primeiro dia do segundo mes do ano vigente.
Durante o período em que estivera sob domínio de um Regime Ditatorial, o país oprimia insurreições que se manifestavam buscando o reestabelecimento da democracia. A repressão à oposição, por sua vez, era a altura do modelo de governo vigente, implicando em perseguição, tortura e assassinato de políticos. Nesse cenário surge a ativista pela democracia, detentora do Prêmio Nobel da Paz em 1991, Aung San Suu Kyi, que unira forças a democratas e retinias revoltosas na busca em reestabelecer a ordem no país.
Aung San Suu Kyi é ainda objeto de contradição. Conhecida por atos pró democráticos e sua luta por no último século contra o regime ditatorial instalado em seu país, sendo inclusive presa por fazer oposição ao governo instalado, a Dama, como assim é conhecida, tornou-se um símbolo, não apenas a Myanmar, mas uma figura de representação democrática na Ásia. Filha de Aung San, considerado Herói da Independência, Suu Kyi tivera um longo percurso para alcançar o poder. Os militares, ao verem sua crescente popularidade, adicionaram clausula especial à Constituição, através da qual veta a um Chefe de Estado alcançar o poder tendo algum familiar estrangeiro. Essa condição afastara Suu Kyi de tornar-se, futuramente, presidente do país, pois fora casada com o professor inglês Michel Aris, com quem tivera dois filhos.
Após longa luta, entretanto, a Dama persistiu na política, vindo a se tornar Secretária de Estado em 2015 e exercendo grande influência a regência do então atual governo. Contudo, diante do êxodo sofrido no país das minorias Rohyngias, diante da ofensiva do exército, que provocara o deslocamento de sua maior parte e a fuga, especialmente para Bangladesh, a Dama foi fortemente repreendida por sua não manifestação diante do que vem ocorrendo. Diante da acusação do governo de promover “limpeza étnica e crimes contra a humanidade”, diversas ações criticam a postura da ativista. Uma dessas ações se deu através da carta, escrita por 23 ativistas, dos quais 6 compartilham do prêmio de Suu Kyi, Nobel da Paz, em que recriminam a postura omissão do governo diante do fato. Outra ação que coloca a Secretaria de Estado em contradição se dá pela defesa do exército diante da CIJ (Corte Internacional de Justiça) diante dos fatos de repressão às minorias, que deveriam justamente ser assistidas pela democracia a qual defendera.
Em 1993 as forças militares organizaram Assembleia Constituinte em que, proposta uma construção redigida pelos militares, supostamente fora promulgada através do voto de 92,4% dos eleitores, após ter tido participação de 99% do eleitorado do país. Essa constituição aprovada, vigente até o período atual, previa, dentre outras coisas, a intervenção militar em caso de “emergência”. Baseando-se justamente nessa brecha, sob a alegação de “reestabelecimento da ordem” no país após suposta de fraude nas últimas eleições realizadas no país, em 20 de novembro de 2020 (há de se observar o crescente “negacionismo eleitoral” entre as democracias ao redor do globo, especialmente nos últimos meses), as Forças Armadas de Myanmar aplicaram no primeiro dia de fevereiro o golpe militar, através do qual declara por presidente o general Min Aung Hlaing. Dentre as ações decorrentes do golpe aplicado, verifica-se ainda a prisão de cerca de 30 políticos, dentro os quais estão o então presidente do país, Win Myint, bem como a Secretaria de Estado, vencedora do Nobel da Paz, citada acima, Suu Kyi.
Decorrências do evento que tomam o país ao caos estão ainda o fechamento de todos os aeroportos do país, fechamento das principais rodovias, interferência no sinal de internet e telefone que cobre o país, corte dos canais de TV, tornando disponível ao ar apenas o canal das Forças Armadas de Myanmar. A Comunidade Internacional manifestando repúdio ao Golpe aplicado e exige o reestabelecimento da democracia, bem como a libertação dos presos políticos, sob pena de sofrer sanções econômicas por parte de países como os Estados Unidos e ainda sanções políticas, por meio da Organização das Nações Unidas
Espera-se, pois, com solene expectativa, que a cambaleante democracia birmanense se reerga e que, de fato, a velha roupa do passado não lhe caiba mais. Antes, que seja essa pendurada em cordas firmes (que são as leis) e exposta para que, a vendo, não lhes sejam novamente forçados a vesti-la.
Autor:
Leonardo Ferreira Coelho