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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

A beleza do interior

Minha família mora nos pés da Serra da Bocaina, em São José do Barreiro. Uma cidadezinha do interior que foi descoberta em XVII pelos tropeiros enquanto eles desciam da Serra da Bocaina rumo a Minas Gerais. Fixaram por aqui para descansar e alimentar seus burros e seus carros de bois. Enquanto eles descansavam, construíram uma capela dedicado ao santo São José no meio de um complicado atoleiro de barro, por isso o nome: SÃO JOSÉ DO BARREIRO. É sempre uma alegria quando consigo emendar alguns dias de folga em São Paulo e venho para cá. Meu costumeiro referencial que estou chegando, é quando o waze me comunica que estou na rodovia dos tropeiros, e desde então avisto morros verdes, pássaros voando, chão de barro e, por último, a estimada placa de boas-vindas a São José do Barreiro. 

Quando chego, faço meu ritual de costume: peço a benção dos meus avós e da minha mãe; beijo e abraço meus irmãos e depois subo para o quarto para despachar as malas e tirar a roupa de viajem do corpo. Desço, e minha família já está a volta da mesa me esperando para tomar café no jardim. Aos poucos os matizes da tarde vão se embora enquanto converso com a minha família; peço licença, levanto da mesa e vou na varanda me esticar na rede de descanso para apreciar a primavera daqui. Contemplo o céu salpicado de estrelas, e o silencio. “Tão bom estar longe dos barulhos da cidade grande, né filho? Aqui você só ouve o badalar do sino, o canto dos pássaros…” disse minha mãe, “vai fazer sol a semana toda, filho, tem poucas nuvens no céu”. Me recuso a aceitar isso, pois sou um chamariz humano quando viajo, mas necessito de uns dias de chuva desesperadamente, fui liberado pela emissora para trabalhar em casa, por isso optei vim para cá, descansar a mente e a alma, após meses de trabalhos enclausurados e em ritmo desmedido. Uma angustia com ponto de interrogação necessitando um ponto de exclamação. 

“Espero que chova, necessito de banho de chuva e cheiro de terra molhada” disse eu para a minha mãe, para mim e para a natureza, com o objetivo de ela atender esse meu pedido.

Meu irmão vai buscar cerveja na adega do seu Zé, enquanto eu me deleito em um vinho seco que trouxe do Futuro Refeitório de São Paulo. Olho para o céu e não vejo sinal de chuvas, nem relâmpagos e nem trovão. Só vejo estrelas afincadas no céu. Mas mesmo assim me agarro na esperança de uma chuvinha nos próximos dias. Os brilhos das estrelas aumentaram e minha vó resolveu sentar comigo na varanda para estilar essa beleza. Eu munido de uma taça de vinho, e ela com uma xicara de chá capim ao som do pio das corujas entre as enormes e inúmeras arvores frondosas. “Sabe, meu neto, dizem que aqueles que amamos quando partem, se tornam estrelas. Eu vejo lá no alto meu pai, minha mãe, seu pai, o Lee, minha sogra, meus irmãos, minha comadre Conceição e tanta gente que amei e já morreram!” disse minha avó. Nesse momento o vento com cheiro de chuva varre as folhas do quintal todo, mas não vejo nenhuma nuvem sobre nós. E nesse momento nasce algo que ali mesmo se enraíza dentro de mim. Não digo nada. Deixo ela continuar contando as coisas das estrelas. 

Durante a madrugada, ouço o barulho da chuva que cai incessantemente sobre o telhado, e sinto a brisa refrescante do vento. Agradeço a mãe natureza e volto a dormir feliz. Acordo de manhã com o latido da mel, cachorra- filha dos meus avós, adentro a cozinha e vejo aqueles fachos de luzes dançando com a fumaça do café coado no pano. Teu santo é forte filho, que choveu. Mesmo sem nuvens e um céu limpo, diz minha mãe. Pensei em escrever sobre isso, mas havia uma força que segurava as palavras dentro de mim. Em silencio, acolho essa força dentro de mim. 

 Na horta e no pomar atrás da casa dos meus avós, tem de tudo: tomate, alface, couve, cenoura, beterraba, almeirão. Ervas para chás e banhos: capim, boldo, arruda, melissa, manjericão, mata-leão. Andando mais para frente, vejo um pé carregado de jabuticaba e me acabo nelas. Flores encantadas por todo o jardim. Copos de leites e girassóis curvadas a nós. Observo em silêncio minha avó colher os limões, as laranjas e partilhar com as vizinhas. Aprecio aquela delicadeza da minha avó partilhando e conversando com suas vizinhas sobre o tempo, a fartura no jardim e nas hortas, as vistas na casa dela, as dores de colunas e joelhos. Penso nas distâncias da minha vó com sua família e na sua solidão, dos 10 filhos, só três falam com ela; dos 37 netos, só 9 falam com ela. Divirjo isso em minha mente sobre um tudo e tanto. Penso nisso quando vejo ela entregando as pencas de banana, as geleias caseiras de goiabadas, as acerolas para a vizinha Teresinha. A vida coletiva dela com as pessoas ao redor. Confluí sua solidão. Ainda no meu silencio me emociono com ela. 

Depois do almoço, peguei a estrada da Água Santa rumo a cachoeira da Usina. Ao chegar na ponte da Dona Esmeralda, me deparo imperceptivelmente com um riacho. Eu molho os pés, lavo o pescoço e bebo um pouco daquela água, e nesse momento peço para que ela leve embora uma porção de coisas que carrego comigo: as energias ruins, a fraqueza, o desânimo, o pensamento negativo. Senti a água levar. E esse momento se traduziu em palavras que não quiseram transbordar. 

Continuando a caminhada, penso nas minhas lutas e na minha quietude nos últimos meses, nas derrotas e nas conquistas, nos amores e desamores, nas amizades. Penso no caderno de escrita que deixei em São Paulo em cima da minha escrivaninha. Queria dar um tempo na escrita, mas ela é instintiva. Tenho que aceitar seu recolhimento e sua manifestação. Escrever é ser grande sem dizer. Descobri enquanto caminhava que não consigo viver longe da escrita nem por um minuto. É como se eu estivesse pressionando um travesseiro sobre as minhas narinas, ficando sem ar. Ficar sem escrever, é ficar sem respirar.  

Autor:

Lucas Dohler

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