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sexta-feira, 26 de julho de 2024

Será o fim do Bolsonarismo? Dos espectros a rondar o Brasil

A pergunta se formula quase por si mesma, em meio ao êxtase ingênuo da elite cosmopolita da social-democracia à brasileira, à medida que o cerco aparenta fechar-se para as possibilidades da manutenção da liberdade de Jair Bolsonaro e as primeiras investidas da dúvida são lançadas contra a outrora certa e garantida possibilidade da candidatura de Michelle Bolsonaro, talvez a única figura, além dos filhos, capaz de reunir todo o contingente de votos que Jair tivera – e ainda, ao contrário dos filhos, parecer ser muito capaz de somar àqueles outros muitos votos ainda, dada a sua natural simpatia e beleza, atributos que já foram decisivos na eleição de Collor no passado, além da possibilidade fácil de explorar a vinculação religiosa e a “pauta feminina”, tão ardentemente em alta, tocada desde as cordas dos meios de comunicação de massa que nos assediam desde os EUA e a Europa.

            Em não podendo ser candidata, o mais provável, em moeda corrente, é que o candidato escolhido pelos experientes dirigentes dos maiores partidos que representam institucionalmente o bolsonarismo seja Tarcísio de Freitas, governador do maior estado do país, considerado um traidor e que é alvo frequente de grande antipatia por parte expressiva do eleitorado cativo de Bolsonaro. Há grandes dúvidas de que, em sendo escolhido, não haja defecção e algum de seus filhos ou outro bolsonarista mais alinhado a Bolsonaro não acabem se candidatando em 2026 por uma legenda menor, concorrendo com Tarcísio e diminuindo-lhe os votos. Este cenário é o ideal para quem deseja ver o país liberto da contenda entre petismo e bolsonarismo, dado que em tal pulverização de forças, é possível que presenciemos o enfraquecimento dos dois polos e o surgimento de uma outra alternativa, no ocaso do lulismo – de quem a saúde lança mais incertezas ainda no ar, que necessitam ser discutidas em outro artigo.

            Estejamos diante ou não do prenúncio da morte do bolsonarismo, de uma coisa não resta dúvidas: algo foi definitivamente posto em movimento. Há uma roda a girar, sub reptícia, ganhando tração a cada dia, alastrando-se pelo país inteiro. À insatisfação unânime de sempre, à inquietação costumeira de antes vai somando-se um desprezo cada vez mais acentuado pelas instituições brasileiras e um apelo, ainda não inteiramente formulado, pelo regresso da força, pela virilidade, pela autoridade capaz de nos conduzir ao progresso por mão de ferro, exigindo impaciente o destino que nos é de direito não mais através dos rodeios retóricos e das petições infindáveis aos processos morosos nas encruzilhadas dos poderes. Parece germinar a certeza de que vem chegando a hora de um conflito, cantado e ensaiado muitas vezes desde 2015, sempre às vésperas, mas que ainda não eclodiu, coisa sempre constatada com certo ar disseminado de tristeza e de frustração – apesar da certeza de que jamais eclodirá, professada pelos arautos da solidez da Democracia Brasileira, incapazes de sentir o chão tremer a seus pés. É sobre a possibilidade desta explosão que gostaria de dedicar algumas reflexões.

            Muito se repara na ausência de pensadores orgânicos capazes de organizar e liderar ideologicamente as novas mudanças que, em meio às primeiras contrações, ameaçam nascer. O cenário parece difuso e conturbado, mas algumas pontas salientes brilham aos olhos atentos, em uma constante ritmada. Se olharmos para trás, a História do Brasil contemporâneo pode lançar luz sobre o presente.

            Cem anos após o auge da força e do impulso iluminista, que varreu o mundo inteiro desde o século XVIII e colocou em marcha as transformações na Europa, quando fazíamos a nossa Revolução Republicana em 1891, havendo passado mais ou menos intactos pela onda liberal já esgotada e extinta, sob a égide de uma monarquia supostamente constitucional, o país foi buscar nas esteiras do que havia de novo e de moderno no pensamento francês, temperado pela força dos acontecimentos desde a Revolução francesa e a maré de reveses que o mesmo espírito iluminista conheceu, a doutrina capaz de impulsionar e galvanizar, coesa, a elite intelectual brasileira, às voltas com a produção da novidade. O positivismo, com a sua defesa de um executivo forte e centralizado, amalgamava-se com o clima político nacional, familiarizado por demais com a expressão da força garantidora da ordem e da unidade nacionais. Não havia esfriado ainda todo o entusiasmo com os progressos da ciência, no alvorecer dos novos rebentos da indústria.

            O mesmo impulso ainda persistia, reverberando sua força século XX adentro, a redundar na Revolução de 30, antecipando na prática, por caminhos teóricos completamente diversos, as teses sociais a que chegariam os pensadores socialistas democráticos europeus produtores da síntese social-democrata durante o Pós Segunda Guerra Mundial, pensamento que se tornaria hegemônico no Brasil somente após a redemocratização, mas do qual a derrota do Marechal Henrique Teixeira Lott e a ascensão de Jango após o suicídio de Vargas já denunciavam – e do qual sob os escombros nos debatemos neste momento, já desacreditado e impotente, no ocaso do lulismo[1]. À época as classes letradas brasileiras eram tão influenciadas pelo pensamento francês quanto o somos hoje por tudo o que vem dos EUA, não sendo de todo surpreendente como pudera alastrar-se assim o pensamento de Auguste Comte entre nós. Riscado o facho da Doutrina, em seu encalço, foram surgindo os brasões anônimos de civis, fazendo sombra à idéia, destacando-se no caminho, juntando-se aos militares, pois que toda revolução pela força das armas não pode prescindir da participação massiva da parte da nação em armas, ou deverá ser movida, necessariamente, contra ela – com o desfecho óbvio de tal choque desproporcional traçado de antemão, se tratamos de uma revolução majoritariamente civil, ou (o que é pior ainda) o desfecho vil e separatista se travado em uma guerra transnacional por procuração, atraindo forças estrangeiras para a contenda.

            Destes capítulos da história ficam algumas lições preciosas para o tempo presente: 1) O Exército, a parte mais numerosa das Forças Armadas, é para o positivismo o que as Igrejas são para o cristianismo, guardando em si, envoltas, as brasas ainda quentes da Doutrina que fundara a República, obra militar do Exército Brasileiro, jamais o esqueçamos, lançado contra a Marinha majoritariamente monarquista em 1891 e contra a Marinha e a Aeronáutica por tantas vezes após 1930, quando os liberais competiam pela hegemonia com os positivistas, só vencendo, também pelas armas, quando o positivismo cedeu lugar ao socialismo democrático (com cada vez maiores concessões ao liberalismo) na década de 60 do século XX, perdendo seu lugar como espírito do tempo – mas só para amargarem nova derrota, é verdade, quando Roberto Campos e sua turma são enxotados do poder pelos positivistas Médici e Geisel, sob muitos aspectos bem mais getulistas do que João Goulart fora.

            2) A nova revolução brasileira será novamente organizada por civis e militares imbuídos de um mesmo espírito galvanizador de ordem e de progresso, ou não ocorrerá. 3) Dadas as características da formação da mentalidade brasileira, sobretudo das Forças Armadas desde 1945, será necessário aos revolucionários afastarem-se dos símbolos que denunciem qualquer proximidade demasiada com o socialismo e o comunismo, havendo que conduzir-se em política interna de maneira conservadora e, em política externa, de maneira absolutamente independente, como fizeram Vargas antes da Guerra, JK e JQ depois dela. 4) O liame óbvio capaz de religar grandes massas, parte substantiva da intelectualidade e das Forças Armadas é o sentimento nacional, o patriotismo redivivo, que pulula solto desde 2018. 5) Todos os sinais indicam que é chegada, novamente, a hora do nacionalismo. De todos os vultos do passado, remexem-se de seus túmulos, com uma explicitude incrível, as ossadas de Enéas Carneiro, à Direita, e de Getúlio Vargas, à esquerda. Não será difícil refazer a trilha evidente que os liga, recompondo o grande elogio de Enéas a Getúlio e purificando este último dos equívocos a que fora forçado após 1945. Em suma, o Getúlio que interessaria mais ao novo tempo que reivindica sua possibilidade de ser é o Revolucionário.

            6) As instituições brasileiras vem tentando antecipar-se às maquinações destes movimentos, mas assombram-se com o volume que é capaz de tomar através das redes sociais, antes marco tão invicto da hegemonia liberal imperturbável entre nós, garantindo a fragmentação da comunidade nacional em milhões de “bolhas” minúsculas incapazes de amalgamarem-se novamente em uma grande e una esfera solar, aglutinadora da força capaz de fazer irromper o novo dia. 7) Será através das Redes Sociais que estes sentimentos se replicarão, passarão de intelecto em intelecto, espalhando e aumentando cada vez mais a temperatura do incêndio, à medida em que ao redor de cada influenciador nacionalista uma comunidade se agrega como outrora agregava-se ao redor de cada jornal Republicano o melhor da intelectualidade brasileira. 8) Dessas redes serão expelidos, naturalmente, os civis anônimos que poderão, quiçá, reencarnar o destino do distante, pacato e minúsculo estancieiro do interior do Rio Grande que se tornaria – sem que jamais pudesse sequer aventar a mera hipótese – o maior dos homens a pisar este chão santo, derramando sobre ele o sangue em sacrifício, como quem imita Cristo bem mais modestamente, morrendo para a redenção de nós, brasileiros – esta parte sem par da humanidade.


[1] É interessante notar como a figura de Brizola fora uma espécie de ser de transição entre os dois espíritos da época. Se por um lado fora o apóstolo quase solitário do getulismo na pós-redemocratização brasileira, por outro introduzira a crifra “democrático” ao Trabalhismo getulista, obrigação adquirida desde o fim da Segunda Guerra, quando os EUA encomendaram a deposição do “ditador” sob os aplausos dos liberais cada vez mais presentes, no momento da ascensão do espírito lacerdista no país, e mantida após mais de duas décadas de regime de exceção no Brasil, impostos igualmente pelos liberais, com a ajuda dos EUA, contra o ex-ministro do Trabalho de Getúlio Vargas em 1964. Não deixa de ser incômoda a aproximação cada vez mais orgânica de Brizola com os movimentos sociais e, por conseguinte, com todas as colorações do socialismo e do comunismo, e seu progressivo afastamento das Forças Armadas, que o repudiavam veementemente, repetindo o quadro trágico de Jango. De longe se assemelham, é verdade, à icônica aproximação de Getúlio Vargas e o líder comunista Luis Carlos Prestes, denunciando que o espírito do tempo no Brasil havia mudado definitivamente e que, mesmo com os esforços conservadores de um Juscelino e do Marechal Lott, mesmo com os esforços até mesmo de um sombrio e duvidoso Jânio Quadros, o getulismo estava irremediavelmente perdido, degradado em uma espécie de socialismo pela ação do tempo, em plena Guerra Fria, no quintal dos EUA.

Autor:

João Batista Magalhães Prates. Bacharel e mestre em Filosofia (UNIFESP, 2018 e 2022); especialista em Ensino de Sociologia (UFMS, 2022), em Gestão e Controle Social das Políticas Públicas e em Direito Público Municipal (EGC-TCMSP, 2021 e 2023). Possui pós-graduação em Legislativo, Controle Externo e Políticas Públicas no Brasil e em Legislativo, Território e Gestão Democrática da Cidade (EP-CMSP, 2020 e 2023).


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