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sábado, 23 de novembro de 2024

O que são e para que servem os sonhos? Uma abordagem neuropsicanalítica para muito além de Sigmund Freud

Os sonhos, desde os tempos mais remotos, despertam fascínio sobre o homem, que procurou entendê-los primeiramente através de crenças, de misticismo, de conceitos religiosos. O homem se inquietava, perguntando-se: o que são e para que servem os sonhos? Freudianos dizem, basicamente, que os sonhos possuem relação direta com as repressões, constituindo-se uma espécie de refugo, “lixo entulhado em um porão”; esse “lixo”, não poucas vezes, vem à tona em forma de patologias ou de vícios comportamentais.

Entre os estudiosos dos sonhos, Freud e Jung são os que mais se destacaram e que se mantém em destaque no que alguns chamam de pós-modernidade. Freud, Jung e outros, se lançaram à análise de sonhos sob _em ceta medida_ perspectiva lógica, científica, e para Freud o sonho era, acima de tudo, “realização de desejo” que, em estado vigil, é reprimido. Neste ponto é que, para Sigmund Freud, o sonho tem relação direta com as repressões ou recalques. Mas convém observarmos que Freud se equivocou, pois “realização de desejos” é apenas uma característica dos sonhos. Sonho é, porém, outra coisa, que, por sua vez, se constitui conjuntamente, pois resulta de múltiplos fatores. Jung, embora se refira às repressões (tema esse abordado também por Nietzsche, mas não de maneira aprofundada) as entende de um modo um tanto diverso de Freud. Para Jung, os sonhos são uma espécie de “herança de um período primitivo”, quando o homem era (segundo ele) puro, não possuindo a razão, caracterizada pelo consciente (a expressão mais adequada é consciência), pelo inconsciente (aqui, convém trocar a palavra inconsciente pela palavra inconsciência), e pela interação de ambas as coisas, sob regência dos instintos e pelo que se costuma chamar de intuição. Houve (segundo Jung) um período em que o homem era “completo”, “harmonizado com a Natureza”, não tendo linguagem; tudo era simbólico, impressões diretas do que era experimentado. Sob esse ponto de vista, Jung considerava que os sonhos são “informações simbólicas que nos apontam caminhos, soluções”. Os sonhos, para Jung, possuem relação direta com o que chamou de arquétipos e de inconsciente coletivo. As repressões ou recalques, na visão de Jung, resultam de uma “negligência às informações simbólicas”, que, para ele, tem relação direta com “quem realmente somos”, com “o que devemos” e com “o que não devemos fazer”. Tais questões serão abordadas mais adiante. Chamo à atenção, porém, para o fato de que, se os sonhos são herança simbólica de um período primitivo quando o homem era (segundo Jung) puro, não possuindo a razão, caracterizada pela relação consciência-inconsciência, o homem primitivo não sonhava. Essa conclusão, que resulta diretamente da visão junguiana de serem, os sonhos, herança simbólica, mostra o quão Jung se equivocou. Tal erro se constata ao estudar, dedicadamente, as origens do sonho, no homem primitivo, coisa que tem direta ligação às origens da cognição. Os sonhos tiveram seu início já no homem primitivo e, muito rapidamente, antecipando-se à cognição e sendo, inclusive, um dos principais fundamentos para o desenvolvimento da linguagem conceitual, do raciocínio mais complexo. Sendo assim, convém-nos fazer, de modo reforçado, o questionamento: terá mesmo existido um período em que o homem não possuía a razão (“consciência” e “inconsciência”)?

Tivemos, sempre, em algum nível, consciência e inconsciência. Talvez seja melhor, no que se refira ao nosso período mais primitivo, chamar tais estados de “atividade passiva” e “passividade ativa”. De modo mais didático, vou explicar o conceito que estou apresentando: o primeiro estado (atividade passiva) se refere à consciência, entendida, neste ponto, como identificação das coisas ao redor; algo semelhante a um satélite que capta informações, sinais de tudo que entra em relação direta ou indireta, mas não sendo capaz de fazer inferências ou deduções. Sobre o inconsciente, que classifico como “estado de passividade ativa” (no que se refere ao mais primitivo estágio na evolução do ser humano) digo que houve uma espécie de “ebulição”. Segundo esse raciocínio, embora o homem em seu período mais primitivo não tivesse consciência, as interações dele com outros de sua mesma espécie ou com o meio ambiente influenciavam seu comportamento. Os estados de “atividade passiva” e “passividade ativa” foram necessários para a seleção de coisas mais importantes, coisas menos importantes e coisas sem importância. Grosso modo, podemos utilizar, para exemplo, a semente, que vai se transformando em planta, arvore e fruto, tendo, seja por assim dizer, “em ebulição”, as informações que se vão tomando corpo, pela interação dela (semente) com o meio (solo, humidade ou calor do ar).

Na época de Freude e Jung, entre outros, os sonhos eram o que mais inquietava o homem, devido, principalmente, às interpretações místicas em relação a uma espécie de “revelação de algum DEUS”, como se “esse DEUS, mediante sonhos, se comunicasse com o homem”. Os sonhos podiam conter “revelações do DEUS para o homem”, individualmente, “para toda uma comunidade” ou mesmo “para uma nação ou para o mundo inteiro”, sendo, a sua interpretação, um “dom DIVINO”. Os homens de ciência viram-se impelidos a conduzir-nos a um entendimento não crédulo, e sim, racional, sobre os sonhos. Nessa ânsia de dar respostas rápidas sobre essa questão, Freud e Jung, entre outras mentes brilhantes, cometeram alguns erros ou, no mínimo, não se aprofundaram nas questões tanto como elas exigiam e ainda exigem. Faz-se necessário uma abordagem mais crítica sobre a Psicanálise, para que possamos depurá-la, reconhecendo sua importância, principalmente para o nosso tempo. De antemão, digo que não há um sentido dos sonhos. Contudo, pelos sonhos o homem pode dar algum sentido à sua própria vida, desde que sejam feitas ressalvas, para não cair no extremo semelhante ao antigo misticismo, dando exacerbada importância aos sonhos. Voltemos à pergunta: “O que são e para que servem os sonhos?”. Sob o ponto de vista da NPA (Neuropsiquiatria Analítica) podemos observar melhor esse assunto dividindo-o em quatro partes:

a) Espasmos da alma

Assim como nosso corpo algumas vezes produz, involuntariamente, movimentos que chamamos de espasmos, a “alma” ou “mente” (síntese de funções do organismo sob suas bases constituintes e de inter-relação com aspectos socioculturais) tem, seja por assim dizer, “movimentos involuntários”, “espasmos”. Os sonhos seriam, desta forma, “espasmos da alma”, que na maioria das vezes são aleatórios, sem qualquer encadeamento e significado, resultado de acúmulo de tudo que, ao longo da vida, fazemos, assistimos, lemos, tocamos, cheiramos… Os sonhos podem, obviamente, revelar importantes coisas sobre a nossa vida, sem que isso seja, necessariamente, uma “função dos sonhos”. Em nosso corpo, esses movimentos involuntários, ou espasmos, decorrem de acúmulo, excesso de força ou eletricidade utilizada ou distribuída. Esse excesso ou acúmulo de força, de eletricidade no organismo, pode ocasionar lesões (por exemplo, lesões musculares), inflamação ou estriamento, e nesses casos, os espasmos constituem um importante sinal de que algo não está bem, e de que é preciso, então, mudar alguma coisa no organismo ou em relação ao organismo, e pode ser, em outras vezes, apenas uma forma de liberação dos excessos, para que não ocorram tais problemas ao organismo. De modo semelhante, os sonhos podem, algumas vezes, sinalizar que algo está errado com a pessoa, com algum aspecto da vida da pessoa, mas também pode ser, apenas, “espasmos involuntários da alma”, para liberação de excessos eletroquímicos oriundos da produção de informações e do acúmulo dessas informações.

b) Gavetas ou Prateleiras

Outro aspecto importante a ser entendido sobre os sonhos é o que, com base em Neurofisiologia, ou mais propriamente Neurociências, podemos chamar, metaforicamente, de “gavetas” ou de “prateleiras”.

Imagine que você está com pressa, procura um determinado par de meias em uma gaveta e só encontra uma das meias. Então, apressado, abre diversas gavetas e não encontrando a meia que compõe o par, você pega uma outra, de cor aproximada _algumas vezes percebendo só após muito tempo. Por que tal coisa acontece? Como as cores são aproximadas e a calça irá cobrir quase que completamente as meias, você utiliza essas meias de pares diferentes, tomando essa decisão de maneira consciente ou não. Outro exemplo, um tanto dramático, foi o que aconteceu com uma amiga: ao ir para o velório de um parente muito querido, ela calçou sapatos de pares distintos que estavam em uma mesma prateleira, só vindo a perceber quando, já no velório, as pessoas a olhavam de modo estranho. O cérebro funciona assim, em estado vigil (como nos exemplos citados acima) e, principalmente, quando estamos dormindo. Exemplo: você está dormindo e um inseto lhe pica um dos lados de seu rosto. A sua reação sensorial epidérmica pode ser semelhante a de uma protuberância ocasionada por acne. Como o cérebro trabalha buscando “em gavetas” ou “prateleiras”, irá produzir um sonho em que uma acne começa a se desenvolver em seu rosto. Essa protuberância, por sua vez, pode levar o cérebro a outra coisa que ele considere semelhante. Então, o que primeiramente era, no sonho, uma acne, se transforma num dedo. E o cérebro, novamente se põe a buscar “em gavetas” ou “prateleiras” algo semelhante, e encontra um pênis! Freud explica? Não. Freud não explica. Isso pode não ter nenhuma relação com sentimentos, desejos sexuais reprimidos ou vontade de poder recalcada, e sim, com uma capacidade neuronal de compor cenários por aproximação ou associação mnemônica. Os sonhos podem ser, basicamente, resultados desse processo, ocasionado pelo acúmulo de informações (imagens, sons, sensações) que vai se fazendo no cérebro ao longo de nossa vida, além de alterações neurofisiológicas que se relacionam a estímulos internos e externos. Há sonhos com reais significados e alguns que até antecipam fatos da nossa vida (o cérebro acessa uma rede de informações e, gerando associações, resulta em estimativas, em possibilidades mais ou menos acertadas), porém, a maioria dos sonhos pode ser apenas uma composição por aproximação mnemônica. É preciso muita seriedade para analisar sonhos e, realmente, muitos psicanalistas que trabalham com sonhos, por desconhecerem aspectos importantíssimos do funcionamento do cérebro em relação a todo o contexto fisiológico do ser humano (que não existiam na época de Freud) e por desconhecerem as origens da cognição na evolução humana, cometem grandes equívocos e podem prejudicar vidas. É necessário lembrar que as neurociências têm revelado aspectos do funcionamento cerebral que nos possibilitam rever alguns conceitos propostos por Freud, Jung e outros. Nem todo sonho tem significado. Os psicanalistas quase sempre são, infelizmente, dominados por um vício, uma fixação, de atribuir a tudo algum significado. Cabe-nos perguntar: não teria algum significado esse vício tão comum em muitos de nós, psicanalistas? Deixo essa questão para ser pensada, lembrando que fixação é sintoma de apego permanente ou demasiadamente duradouro da libído a um estágio inicial, mais primário, de desenvolvimento, um forte apego (mórbido) mais propriamente a pessoas ou coisas, desenvolvido, em grande parte das vezes, na infância, e que leva, na vida adulta, a um comportamento imaturo e por vezes neurótico.

c) Associação livre e Interpretação de Sonhos: Um Estudo de Caso

Freud utilizou, basicamente, o método de Antífon (nasc. por volta de 480 a. C.) e de Artemidorus de Daldis (segunda metade do século II)  para mergulhar na inconsciência de seus pacientes. Trata-se de “interpretar sonhos”, não propriamente pelos elementos neles apresentados, mas pela associação livre que o paciente faz em relação a esses elementos. Claro que há, nesse método, uma deficiência que deve ser bem observada pelo analista: as associações livres podem não ser, de fato, livres, pois o paciente, sem perceber, tende a “fugir da verdade” em relação à qual, talvez, não esteja pronto para enfrentar, realizando, assim, o que chamo de “defesa psico-associativa”. Mas, de modo geral, o método é bastante eficiente.

Para demonstrar o quão é complexa a interpretação de sonhos, solicito que imagine que uma pessoa venha tendo um sonho recorrente e que, em tal sonho, ela sempre mata, esquarteja crianças e tenta ocultar o crime, e que essas atitudes, no sonho que se repete com pouca mudança de cenários e elementos, são sempre desprovidas de sentimentos de prazer, raiva ou ódio, havendo uma total apatia, um anestesiamento desfeito apenas pelo medo da polícia descobrir. Como você interpretaria o referido sonho? Com base na associação livre? Lhe pedi para imaginar algo que, na realidade, se passou com uma senhora que atendi algumas vezes. O tal sonho, recorrente, principiou-se apenas depois de muitos anos, tendo ela já mais do que 50 anos de idade, revelando um fato que se deu quando ela era moça muito jovem, uma adolescente, embora ela não tenha feito nenhuma associação com tal fato e nem mesmo tenha me falado a respeito; obtive por um acaso a informação, mediante uma pessoa muito próxima a ela, talvez a única a quem, na adolescência, ela tenha contado o ocorrido, confirmando, com isso, a conclusão a qual eu já havia chegado durante as sessões. Passo, agora, a discorrer sobre alguns elementos das seções, salvaguardando, obviamente, a identidade da pessoa.

Objetivando analisar a relação subjetiva que ela mantinha com pessoas, pedi para que, sem qualquer julgamento sobre possíveis incoerências, ela fizesse associações com palavras que eu ia apresentando. Exponho, aqui, apenas as que se destacaram por causar algum impacto emocional, revelado, algumas vezes, pela extrema velocidade da resposta, em outras, pela ausência de associação e pela análise que pude fazer dessas associações e da ausência de associações:

. Útero = Filho.

. Sonho (no sentido de objetivo, perspectiva na vida) = Tristeza.

. Dinheiro = Maldade.

. Sexo = Incógnita.

. Homem = Interesse.

. Mulher = Doação.

. Marido = Segurança.

. Esposa = Dor.

. Espelho = Segurança.

Cada associação aqui exposta se relacionou diretamente à análise que fiz do sonho recorrente, mas quero chamar atenção para estas: sonho = tristeza; dinheiro = maldade; sexo = incógnita; homem = interesse; mulher = doação; marido = segurança; esposa = dor; espelho = segurança.

A realização de um sonho (no sentido de objetivo, perspectiva na vida) se muito adiada produz tristeza, bem como sua antecipação, pois as coisas, para serem boas, devem acontecer em tempo oportuno, o que, mais do que simples fator cronológico, significa circunstâncias adequadas. Sobre a “maldade”associada ao “dinheiro”, pude constatar se referir à utilização do mesmo como dominação do outro. Sobre o “sexo”ter sido associado à “incógnita”, constatei se referir a sua descoberta do sexo na adolescência e à maneira como se deu: sem alegria e prazer, ou mais propriamente, sem um prazer alegre, e pela maneira que o mesmo continuou sendo vivenciado ao longo de sua vida. Na aparente contradição de associar homem a “interesse”, vindo a associar marido a “segurança”, convém entender que marido não é a mesma coisa que homem, podendo, um homem, casar-se e não exercer, efetivamente, o papel de marido, que, na concepção dela, devido o contexto de sua vida desde a mais tenra idade, significa segurança. Com isso também se vincula a associação que ela fez entre “mulher” e “dor”, e entre “espelho” e, novamente, “segurança”. No que se refere à essa última associação, podemos ressaltar que, “o marido precisava ser um espelho”, um “reflexo dela”, no sentido de “corresponder às suas expectativas de segurança”. Somente após fazer com ela essas associações, pedi que me relatasse os sonhos que vinham perturbando-a ao ponto de, em prantos, ela me perguntar se estava surgindo nela traços graves de psicopatia. Nosso diálogo sobre o sonho recorrente se deu mais ou menos assim:

_”O que ou quem, o cisne branco, em seu primeiro sonho (Perguntei) poderia representar? (Obs.: ela, no sonho, matou o cisne que estava tranquilo num lago que se tornou vermelho pelo sangue. Ressalto que ela não fez associação alguma). Noutro sonho, você (Continuo) mata e esquarteja seu neto, que no sonho era criânça bem pequena, mais que, na época do sonho era um rapazinho. Poderia, seu neto, representar outra pessoa? Se sim, quem poderia ser? (Não associou). No sonho em que mata uma menina, você põe o corpo, esquartejado, num saco e sob um tanque, vindo a imaginar, rapidamente, que a polícia descobriria o crime, pois gotas de água, saídas do tanque, fez escorrer o sangue. Essa menina, a morte e o ocultamento do corpo, poderiam significar algo que, em algum período de sua vida, você fez e escondeu, de certas pessoas e que, de alguma maneira, pode estar escondendo, inclusive de você mesma? A polícia, nesse sonho, poderia estar representando seu medo de ser descoberta sobre isto que pode ter feito e buscado esconder? (Ela disse que “sim”, para essa pergunta final, mas não fez associação alguma com o que teria feito).

Outros pontos importantes revelados nas cessões, que auxiliaram-me na análise do sonho recorrente das associações aleatórias: na infância, seu avô cometeu abusos _toques e insinuações que, posteriormente, em seu casamento, dificultou muito a aproximação prazerosa, alegre e confiante, entre ela e o esposo. Nas palavras dela, seu casamento foi prematuro, seu relacionamento foi insatisfatório, deixando de ter um pai para ter outro; marido autoritário, grosseiro, controlador; ela não aprendeu a tomar decisões; arrependimento após o marido vender uma fazenda que possuíam; “resumidamente, fui uma pessoa infeliz” _Finalizou. Uma observação: as sessões ocorreram no ano de 2019. Seu marido havia falecido faziam quatro anos. Em um dos sonhos em que o roteiro onírico se repetia, em vez de matar um cisne branco ou uma crianças, ela matou o marido. Fato é, que tal sonho recorrente (Segundo afirmação dela) começou após o falecimento do marido. E o marido foi a pessoa diretamente vinculada com a questão perturbadora que emergia oníricamebte, de maneira que, “matar o marido”, seria um meio de “desfazer o fato perturbador”. Ela, por se sentir muito melhor após as sessões, encerrou o atendimento, sem ter uma resposta sobre o significado de seu sonho recorrente, pois eu não o revelei. Convém, aqui, observar que, ainda que o analista perceba o que há por trás de um sonho, ou de um conjunto de aspectos que a pessoa traz de maneira consciente ou não à análise, muitas vezes é de máxima importância não revelar à pessoa. A análise precisa conduzir a pessoa ao reconhecimento, livre, espontâneo, corajoso, dos motivos pelos quais buscou o auxílio de um analista. Sobre o sonho recorrente relatado aqui e a associação livre realizada, o leitor, seguindo a sequência dos elementos, muito provavelmente deve ter chegado à conclusão que cheguei e que, posteriormente, foi confirmada; tal sonho, com a recorrência dos elementos centrais, referia-se a um aborto às escondidas, pelo que ela passou a vida se punindo, mesmo tendo recalcado completamente o fererido fato.

A associação livre, quando bem conduzida, é de grande utilidade. Porém, constitui apenas um dos instrumentos que um analista deve se servir em seus atendimentos. Não pode haver predileção de instrumentos, de métodos. O contexto situacional de quem busca a análise é o que determina os instrumentos, os métodos a serem utilizados pelo analista. Eis a recomendação que se faz em Neuropsiquiatria Analítica.             

d) Anima e animus.

Passemos à questão que Jung chamou de anima (Parte feminina do homem) e a que chamou de animus (Parte masculina da mulher). Essas “partes”, sem que o indivíduo tenha consciência delas, fazem com que esse indivíduo se expresse, em estado vigil ou onírico, de modo oposto à personalidade consciente, isto, segundo a visão de Jung. Para Jung, a mulher deve desenvolver de modo saudável o “animus”, sua parte masculina, e o homem precisa desenvolver de maneira também positiva a “anima”, sua parte feminina. Cabe, aqui, perguntar: onde está essa parte feminina (anima) no homem e onde essa parte masculina (animus) na mulher? Cientificamente, a parte feminina que de fato se encontra no homem é, grosso modo, uma medida do hormônio chamado de progesterona,  entre outras características correlacionadas, e a parte masculina encontrada na mulher é uma medida do hormônio testosterona e outras características correlacionadas. Esses hormônios e essas características nada têm em relação à “anima” e ao “animus” proposto por Jung. O que levou Jung a desenvolver o conceito de “anima” e “animus”? Em primeiro lugar, Jung trabalhou essa teoria sobre as bases de uma concepção de sua época, que distinguia, muito claramente, os “papéis do homem e os da mulher”, a serem exercidos no convívio social, classificando certas características como próprias ao sexo masculino (força; agressividade; coragem; raciocínio lógico etc.) e outras como próprias ao sexo feminino (fragilidade; amabilidade; medo; intuição etc.). Essas características, porém, não são intrínsecas e inerentes aos sexos, separadamente, mas arranjos sociais, a partir de alguns aspectos da evolução biológica que propiciaram ao homem o uso da força ou da possibilidade de usar a força. Outro aspecto importante que levou Jung a conceber a ideia de “animus” e “anima” foi a sua observação sobre si mesmo, principalmente no que se refere ao material simbólico que encontrava em seus sonhos, e, obviamente, no que observava dos sonhos de seus pacientes. A proposta da NPA é outra. Dou, aqui, um exemplo pessoal: tive uma namorada que fazia bolos especialmente para mim, e os fazia muito bem. Certa noite, sonhei que ela fez um bolo que, ao ser tirado do forno, se desfez. Trata-se de um sonho com significado? Qual seria o significado? Sob o ponto de vista de Jung, esse sonho seria interpretado, muito provavelmente, como se referindo a minha suposta “anima”, carente de melhorias, de desenvolvimento saudável, pois, obviamente, a “mulher no sonho” se refere ao homem, no caso, eu mesmo. Porém, observando esse exemplo com circunspecção, faz-se necessário algumas perguntas, do tipo: como estava, em relação à tal mulher, a vida de quem teve o tal sonho? Vamos considerar que esse homem (eu) desejava retribuir todo o bem que a mulher a ele fazia, representando isso, no sonho, pelo “fazer um bolo”. Mas, estando ele (eu) impossibilitado, não encontrando meios de retribuir, de proporcionar a ela tudo que ele (eu) considerava que ela merecia, como se deve interpretar o tal sonho? Se as respostas concordam com as referidas perguntas, o “bolo se desfazendo” representa a sensação de impotência diante dos fatos, o enxergar-se impossibilitado de fazer a ela o que ele considerava importante e totalmente adequado ao que ela merecia. Cabe, aqui, um adendo: a sensação que experimentei durante o sonho, mesmo ao acordar foi de impotência moral.

Continuemos: no sonho, a mulher (minha então namorada) representa, obviamente,  eu mesmo. Porém, isso não se trata de uma suposta parte feminina (anima) no homem. Aqui, com propriedade se aplica o conceito de recalque, e para exemplificar, podemos acentuar a possibilidade de que, “o relacionamento entre ambos, de algum modo não estivesse bom”, e o “bolo se desfazendo” poderia estar relacionado à “vontade do homem de terminar a relação”. Essa análise seria outra bastante adequada, se o analista (se houvesse uma relação analista/ analisando) conduzisse bem as seções, levando em consideração a inter-relação de eventos desvelados durante o atendimento, que se faz em secessões.

O ser humano, naturalmente, tende a não reconhecer, a não querer enxergar suas próprias debilidades, sua incapacidade, e isso pode fazer com que, ao sonhar, seja representado como sendo do sexo oposto, quando não é representado por outra pessoa do mesmo sexo. Isso se dá por uma espécie de “mecanismo natural de autodefesa”. Uma terceira possibilidade _caso o sonho não se mostrasse, de modo algum, adequado ao contexto do sonhador_ é a de que, o referido sonho, não tivesse mesmo significado algum. Lembrando a questão das “gavetas” e “prateleiras”, seria possível que um vizinho estivesse fazendo um bolo, e que, como o sonhador já estivesse próximo de acordar, com o cérebro, por isso, bem mais suscetível a estímulos externos, tivesse captado (ou capturado) o cheiro do bolo (memória olfativa). Colocando de maneira bem resumida, neste terceiro exemplo, o “bolo se desfazendo” poderia estar associado ao fato de que o homem já estivesse acordando, com os raios do sol incidindo em seu rosto, no ápice do cheiro do bolo no forno do vizinho. Alguém poderá questionar, dizendo: “Se um sonho em que o homem aparece representado pelo sexo oposto for positivo, se referindo a ótimo desempenho, coragem, força etc., não há recalque, e sendo assim, a figura da mulher representa a anima”. Diante de tal questionamento, afirmo que mesmo nessa representação onírica pode haver recalque. Explico: o indivíduo que tem um sonho positivo, em que ele desempenha muito bem uma função (Ao contrário do “bolo se desfazendo”) mas sendo representado pelo sexo oposto, pode, na verdade, estar revelando seu desejo de ter as qualidades que, representado pelo sexo oposto, ele possui apenas no sonho, não as possuindo na vida real, de modo que, tal sonho, sutilmente revelaria sentimentos de inferioridade, de incapacidade, medo etc. Autorecalque pode ser o que faz com que nos vejamos representados pelo sexo oposto, em nossos sonhos. É totalmente possível que não exista “animus” e “anima”, que a teoria de “animus” e “anima” tenha sido resultado de preconceitos _não de Jung, mas de sua época_ referentes ao que se considerava como “coisas de mulher” e como “coisas de homem. Outros terapêutas, mesmo sem um aprofundamento, também entendem que a teoria de “animus” e “anima” é ultrapassada, observando o cenário atual, em que os papéis são compartilhados e, em não raras vezes, trocados, de maneira que já não há o “determinismo social” que, no tempo de Jung, havia, e consequentemente a teoria de “anima” e “animus” não poderia mesmo ser ainda adnitida.

Para concluir, reitero que, em NPA, o contexto situacional de quem busca a análise é o que determina os instrumentos, os métodos a serem utilizados pelo analista, de modo que um mesmo sonho pode ter significados diversos ou não ter significado algum, como aqui demonstrei. Convém a observação de outa questão, relacionada à análise de sonhos: experimentos com neuroimagens monstram que, durante os sonhos, as áreas diretamente responsáveis pela memória e simbolização, ficam “apagadas”, o que leva muitos pesquisadores não psicanalistas a errarem, afirmando que os sonhos resultam, plenamente, de acúmulo do que se faz durante o dia, não tendo relação alguma com o passado e que, consequentemente, são aleatórios, sempre desprovidos de qualquer significado.  Para tais pesquisadores a análise de sonhos não tem validade alguma. Porém, esses pesquisadores desconhecem a prática clínica, no que se refere à análise de sonhos, e desconsideram as descobertas em Genética, referentes à “memória celular” ou “corporal”, entre a questão motora e conceitual resultante da relação organismo/ambiente.

Muitas de nossas atitudes cotidianas não requerem “memória consciente” e, consequentemente, “raciocínio consciente”. Um exemplo: “erguer o braço para coçar a cabêça”. Também, mesmo dormindo, ocorre de pessoas “pronunciarem palavras” ou “mover-se com total significado”, como quando em estado vigil. Esse tipo de “memória” e “raciocínio” é o que ocorre quando estamos sonhando, motivo pelo que, em neuroimagens, praticamente não há relação direta entre sonhos e áreas de “memória” e “raciocínio conscientes”. Ou seja, embora não haja participação direta das áreas relacionadas à memória e simbolização conscientes, ocorre, durante o sonho, “resgate situacional/afetivo”, pelo que a simbolização ocorre, inter-relacionada ao comportamento da pessoa, reprimido em alguma medida, por ela mesma ou por circunstâncias.

Recentemente, o neurocientista Iván Izquierdo disse, em entrevista à Folha de São Paulo, que a Psicanálise, hoje, “pode ser considerada um exercício estético, não um tratamento de saúde”. De fato a Psicanálise não tem eficiência e eficácia como terapêutica, mas há, de certo, psicanalistas eficientes e eficázes em seus atendimentos fundamentandos na Psicanálise, pois utilizam muito bem os rudimentos teórico-clínicos desenvolvidos por Freud e outros, unindo-os às mais recentes descobertas em diferentes áreas do conhecimento. É importante ressaltar que tais rudmentos são tão bons que ultrapassam as gerações, rompendo as barreiras dos séculos, influenciando outros seguimentos. Não é por nada que neurocientistas como António Damásio (1944), Eric Kandel (1929), Joseph LeDoux (1949), Helen S. Mayberg (1956), Jaak Panksepp (1943), Vilanayur S. Ramachandran (1951), Oliver Sacks (1933) e muitos outros, entre os quais são dignos de nota o professor titular de Neurociência, fundador do Instituto do Cérebro da UFRN e codiretor da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e Antonio Carlos Pacheco e Silva, Doutor em Medicina do Departamento de Psiquiatria da USP, membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, considereram a importância da Psicanálise e desenvolvem estudos sobre a interface Neurociência/Psicanálise.  Diante do que aqui coloquei, a análise de sonhos, com as devidas ressalvas apontadas no presente artigo, é valida.

Obs.: o presente artigo foi realizado a partir do livro NPA: Ensaio Propositivo de Neuropsiquiatria Analítica, publicado em 2019, de minha autoria, e que em breve estará disponível em edição revisada e ampliada, e faz parte do Curso de Formação em Psicanálise com Propedêutica à NPA, estruturado e ministrado por mim.

Autor:

Cesar Tólmi – Psicanalista, filósofo, com Graduação/Licenciatura em Filosofia, pós graduando em Neurociência Clínica, jornalista, artista plástico autodidata, escritor e idealizador da Neuropsiquiatria Analítica com integração dos campos clínico, forense, jurídico e social.

cesartolmi.contato@gmail.com

https://youtube.com/@SALAVIRTUAL.CesarTolmi

11 COMENTÁRIOS

  1. O autor conclui por conta própria que o homem primitivo não sonharia segundo a visão junguiana para reputar como “equivocada” a sua própria conclusão equivocada., Depois mostra desconhecimento ao abordar de forma superficial e distorcida os conceitos de anima e animus, deixando de citar o principal aspecto de cada um: os princípios de Logos e Eros.

    • Demonstre com argumentos, com raciocínio lógico, e serei grato por orientar-me. Noentanto, informo que li todas as obras de Jung e Freud, e grande parte dos demais teóricos e clínicos que seguem tais vertentes e que, sobre elas, escreveu. Na realidade, li mais de dois mil livros no total. Sou um pesquisador imparcial. Aguardo a sua contribuição. Obs.: não sou o único psicanalista que já não admitem tais conceitos junguianos. É uma tendência que vem crescendo por conta dos avanços científicos que lançam maiores focos de luz…

  2. Me absorvo nesse assunto!
    Concebo o “sonho” como um “outro lado de experimento da Vida”!
    A rotação terrestre gerando noite e dia, configurada com nosso metabolismo que nos induz á pausa física, ao relaxamento e ao sono, até ao “adormecer”, faz parte de um projeto, do projeto Divino. Permita-me ser franco à verdades incômodas! No processo do SONO, dormindo, o ser Humano tem uma porta aberta á outra dimensão existencial, aberto á conexões com seu mundo interior, num universo fabricado pela própria mente, e de fato se torna um “visitante” sensorial em “outra dimensão” com interações pessoais e interpessoais! Múltiplos relatos históricos bíblicos, destacam que “em sonhos” ocorreram comunicação clara entre Deus e os Homens, em sonho Noé foi orientado arquitetônicamente como fazer Arca, em sonho Nabucodonosor foi advertido de sua queda, em sonho, José foi admoestado a não abandonar Maria! Os sonhos são hoje, experiências difusas, embaçadas, muitas vezes sem sentido, turbulentos, pois o Ser Humano, se distanciou em “imperfeição genética” herdada, do projeto original que consistia em que o Dormir, era o portal para entrada no “mundo existencial espiritual”, uma coneção individual com outras portas, cada dia, novas experiências não sujeitas á leis físicas e á lógica que vivenciamos “acordados” ou “conscientes”….mas… estão mesmo vcs acordados? Estão conscientes do que seria ou é de fato A REALIDADE? Porque os sonhos são atualmente envolvidos nessa nebulosa de incógnitas? Ou nem mesmo lembramos muitas vezes? Porque nos foi fechada a porta dessa parte da “vida”! Temos acesso a essas “migalhas” ou fragmentos de experiências, por natureza instintiva, e quando bem mais harmonizados, e em orações, buscando a Pai, o acesso se torna mais claro, porém ainda assim, sem méritos para o desfrute pleno para qual os SonhoS foram “criados”!!! Ficariam surpresos em saber mais sobre o assunto …

    • Concordo…????????
      Sempre fui de sonhar, mtos não entendem essa conexão. Mtos tbm me procuram para interpretação espiritual. Graças ao meu Senhor Jesus, Ele sempre me confirma ou revela sua real intenção Qt aos sonhos de revelação. Levo mto a sério. Hj msm li sobre o sonho de José em Mateus 1:20…

  3. Seja lá quem escreveu este artigo não leu uma linha do que Jung escreveu sobre o método dos sonhos. Jung não cria uma teoria dos sonhos, pois eles são formados no Inconsciente, logo inacessíveis a Consciência. O que ele cria é um método de trabalho com sonhos. Sugiro ao autor deste artigo ler o apêndice do Volume 3 das obras completas de Jung “Psicogênese das Doenças Mentais”.

  4. Assunto instigante a interpretação dos sonhos mas deve sempre ser considerado na realidade de sua época. Considero os sonhos como uma ferramenta na qual o sonhador pode ir revelando seu próprio inconsciente. No caso do sonho do bolo, vou arriscar minhas considerações, quem alimenta o bebê é a mãe que vai desenvolvendo com ele uma linguagem afetiva, de cuidados que vai reproduzir ao longo da vida. Então o sonho fala como o sonhador (masculino) lida com o feminino, revestido do arquétipo materno, de afetividade que leva o bolo a desandar, sem ver as potencias de virilidade e fertilidade que o masculino e o feminino segregam em si.

    • Li todas as obras de Jung e Freud, e grande parte dos demais teóricos e clínicos que seguem tais vertentes e que, sobre elas, escreveu. Na realidade, li mais de dois mil livros no total. Sou um pesquisador imparcial. Mas entendo você…

    • Se lesse imparcialmente, perceberia que não autorizo o “inconsciente coletivo” de Jung. Aliás, o contesto detalhadamente em meu livro NPA: Ensaio Propositivo de Neuropsiquiatria Analítica, publicado em 2019.

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