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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

A guerra é contagiosa

Continuamos a descurar o óbvio, a vida. Pois, apesar de inevitável, o ser humano continua nessa insanidade de matar, enquanto, cada vida se extingue em promessas de eternidade. Nada disto é novidade. Desde sempre nos centramos na compra do tempo, mal gastando o ínfimo das posses num emprego trivial, no mais honesto dos casos, usa-mo-lo com amizades, muitas vezes, vazias, tão só preenchendo o tempo de outros. Adornamos a nossa passagem com carros potentes, casas gigantes que diminuem a frequência dos abraços e aumentam os ecos, bebidas e drogas com hora marcada na estalagem da loucura. E de repente, somos obrigados a correr atrás do tempo, cada momento, cada dia, esquecendo o importante, esquecemos o cerne da questão. Volto ao início, a vida. No final das contas, a vida é infinitamente justa! Todos os nossos erros e acertos serão esquecidos e evidenciados no eclipse da morte, mas por agora, esqueçamos que existe. Vivemos um período, em que se esquecermos o transcendental, a morte, as doenças que nos ameaçam são inócuas, qualquer uma, qualquer vírus, qualquer pandemia. Pensemos bem, no pior dos casos, as vítimas unicamente poderão morrer, porem, se esquecermos esse fator, estamos salvos. Como estamos habituados a esquecer a nossa mortalidade, continuaremos a fazê-lo um pouco mais. Esqueçamos aquele que por poder consegue dizimar um pais, uma cultura, arrasar miles sonhos com a normalidade, em troca de hectares de influência. Vivemos na pandemia da avestruz, da ignorância, da desumanização, da estupidez, do medo.

Desta vez tocou-nos lidar, a nós, (…) a nós! À geração com a menor tolerância ao sacrifício, impossibilitados de lidar com a penitência de oferendar tempo, do nosso tempo, ou espaço, do nosso espaço, para o bem do próximo. Nós que não sabemos contemplar o mundo como nosso, nem arriscamos o nosso bem estar em prol do futuro. Nós que não encontramos em casa caras familiares de familiares. Nós que não aprendemos a conversar sem usar telefone, aprender que os livros se usam para ler, que cozinhar é uma experiência social e não só gastronómica, que os filhos tem opinião e os pais tem capacidade de aprender deles, que da nossa janela dá para ver a rua, uma rua que sempre ali esteve, e que tem uma vista mais linda que a do nosso espelho. Que vivemos com as pessoas que nos matam as saudades, e isso basta para viver.

Se continuarmos a esquecer que a morte não existe, ou só existe para os mortos, é extremamente massudo lidar com a guerra dos outros. Basta o orgulho do bem que nos vestimos ou maquilhamos, ou os sítios que nunca visitamos nas redes sociais, as fotos que quase tiramos aos sítios de outros, com gentes de outros, que podem já ser cadáveres de outros, pois a morte existe para os outros. Então, as redes sociais deixam de ser tão sociais, porque, se não causas inveja, como podes ser social?

Esta é uma oportunidade única de as pessoas poderem ser sociais de verdade, entre quem são os seus verdadeiros núcleos e não os falsos ninhos de estupro de egos.

Esquecendo que a morte pode entristecer o filho do idoso, do muito idoso, do comatoso, do russo, do ucraniano, do mundo que apodrece na cama urinada de um lar esquecido no interior desértico, esquecendo que essa plebe existe, centremo-nos no jovem que deixa de estudar, que amanhã é adulto e não sabe pensar, não sabe opinar, não sabe falar, e nem sequer se recorda o que é a morte, isso sim, é aterrador. Para somar mais ao medo latente de uma sociedade onde não se distingue centúrias verdadeiras, a ignorância dos nossos filhos levará a sobrelotação das prisões do amanhã, e não um amanhã metafórico.

Se esquecermos que virar a cara ao problema também mata a criança pontapeada, ou a mulher esfaqueada, ou o homem crivado a tiros, ou mesmo, o idoso refugiado, congelado nas estepes fronteiriças, sem a pastilha das seis. Se esquecemos o outro lado do planeta, estamos a cerrar o caixão dos tempos. Mas, esquece tudo isso, unicamente resta uma premissa, a mais importante de todas, nunca podemos esquecer que ser humano é contagioso!

Autor:

D.P.Esteves (nasci Diogo Pedreira Esteves; Lisboa, 31 de maio de 1983) sou poeta, contista e novelista português. A minha obra é de caráter obsceno e estilo totalmente coloquial, com descrições cruas e realistas dos submundos do alcoolismo, da toxicodependência e relacionamentos baratos, tentando assim explorar os demónios que tão mal aconselham.

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