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quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Miguel dos porcos

Nos tempos idos, em décadas de 1960/70, a cidade de Crato constituía-se muito pouco do meio de transporte, até de pessoas, onde só existia o ônibus do Lameiro e, raramente alguns automóveis, o Jeep e a Rural e o Calambaque de Pedro Maia. E menos ainda carros de cargas, o caminhão Chevrolé. Escassos veículos automotores para transportar animais ao Matadouro. Este se localizava logo depois da ponte das Piabas, hoje ponte de Bia, bem próximo à ladeira do sítio Lameiro. Os rebanhos de gados bovinos eram tangidos para a matança pelos rudimentares vaqueiros, as ovelhas pelos seus cuidadores.

Ah! Os suínos, porcos que por serem de pequenos portes, lentos do seu caminhar, que tinham o ligeiro cansaço pela espessa gordura coberta de seus pelos, caiam de imediato por terra, assim que, nas estradas ainda carroçáveis, que eram sombreadas por algumas árvores existentes no caminho, deitavam-se e não mais tinham forças para continuarem indo até o fim da jornada. Pouca gente gozava desse ofício ou quase ninguém. Exigiam-se paciência e maestria para se chegar ao abatedouro com um bando de porcos. E, um dos mais conhecidos tangedores de suínos daqueles tempos, figura-se na pessoa de Miguel dos porcos.

Quem era Miguel dos porcos? Perguntariam as gerações novas.

Miguel dos porcos personalizava em suas características uma estatura de pessoa alta, cor negra, cabelos caracolados e barbas, cuja fisionomia assemelhava-se a Rau Seixas, era magro e de mãos e pernas alongadas. Sempre no seu trabalho de guiar os porcos para a matança do Crato.

Não havia outro como o Miguel em tangimento daqueles pequenos seres que se destinavam a tornarem-se comidas de churrasco e chouriços. E, os meninos que viam Miguel no seu ofício, principalmente na sexta-feira, tocar os porcos, em torno de até vintes animais, para o matadouro, se assustavam, entravam sem demora para dentro de suas casas, ou outros mais afoitos, por curiosidade, queriam vê-lo bem de perto Miguel passar com os inocentes animais para o seu fim.

Os garotos mais audaciosos, que se juntavam nas beiras das estradas, escondidos por trás de um muro de alguma casa, pedras ou barrancos, esperavam Miguel passar com seu costumeiro assobio e nas mãos uma vara ou chicote, ferramenta de auxílio do seu serviço.

Aqueles pirralhos, escondidos, diziam para Miguel o que ele não achava bom, que se enrosca contra quando assim gritavam com intuito de fazer Miguel dos porcos ficar bravo, de atirar pedras

– Acelera os porcos, Miguel…

Miguel, raivoso, seguia com os porcos, depois de xingado pelos pequenos. Mas ia em frente até o Matadouro como cumpridor de sua labore. Desde muitos anos que Miguel tinha o trabalho de sempre tanger porcos. Não havia outra coisa a fazer, Miguel dos porcos era visto por muitos e assim era conhecido. Que até mesmo a pessoa que hoje deixa estas linhas escritas, lembrando quando menino, também via, quase todos os dias, Miguel guiando os porcos passando de frente da sua casa do bairro Pimenta, indo para o Matadouro. E até seguia com o Miguel vendo-o tangendo o rebanho ao seu destino. Miguel dos porcos por assim ser chamado, que fazia medo quando os garotos não obedeciam às suas mães, elas diziam:

– Menino, lá vem Miguel dos porcos; Vou chamar Miguel dos porcos; Cuidado em Miguel dos porcos vira bichos.

Ah! Sim, Miguel dos porcos também fazia-se virar bichos. Isso por quê? Segundo diziam porque ele virava bicho ou se transformava em lobisomem por ter batido na sua mãe. Ela lhe havia soltado uma praga de virar bichos. Todo o dia de Lua Nova ou numa sexta-feira 13, Miguel dos porcos assustava a redondeza quando depois da meia-noite. Todos sabiam que Miguel dos porcos transfigurava-se em qualquer bicho, e saia à noite correndo assustando as crianças ou até mesmo os adultos com aparição de um lobisomem rosnando pelo fim da noite.

Os gritos da noite de um lobisomem via de quem as crianças tinha muito medo. É Miguel dos porcos, menino, diziam as mães, cuidado, não fiquem na rua até tarde da noite, olha o lobisomem… Os meninos entravam cedo em suas casas, e, durante a noite de Lua nova, ouviam repercutindo os latidos dos cães correndo atrás de um lobisomem, seria possivelmente, Miguel dos porcos. E, quando a noite de Lua nova passava, tudo se acalmava e amanhecia o dia, havia o comentário de que Miguel dos porcos teria aparecido coberto de suas pragas, castigos. Mas, Miguel dos porcos, durante o dia, como já é notório, seguia caminho com seus porcos.

Que, num certo dia, um chofer (motorista) de um caminhão vindo de outros Estados, digamos, por exemplo de Pernambuco, conta-se que esse caminhoneiro teria comprado vinte porcos para levá-los à sua fazenda. Colocando-os na carroceria, seguiria o caminhoneiro sua viagem.

Mas precisaria de alguém que pudesse cuidar dos porcos, em cima do caminhão, perto da boleia, no começo da carroceria onde fica o gigante. Não havia quem. O motorista do caminhão, Chevrolé, queria saber de alguém se indicaria uma pessoa para ir com ele nesse auxílio. Cuidando dos porcos na viagem, subindo a Serra do Araripe, que atravessaria toda a noite.

Viagem até perigosa e assustadora, uma travessia por onde havia na floresta onças ou outros bichos ou mesmo assombração. E o motorista, para não correr esses riscos sozinho no caminhão carregado de porcos, obrigou-se a contratar um cuidador. Então, disseram-lhe que a única pessoa que poderia e teria coragem de acompanhá-lo seria quem? Miguel dos porcos. Que se prontificou na tarefa arriscada, montado na boleia do caminhão, carregado de bichos de sua estimação e seu ganha pão. E foi. O caminhão partiu saindo do Crato já pela noitinha. Com Miguel lá agarrado ao gigante do caminhão ou ora sentado, sempre observando os porcos, que não haveria nenhuma infortunidade com a carga de porcos de sua responsabilidade.

E o motorista do caminhão ia seguindo viagem, teria subido uma ladeira da serra, noite a dentro. Em um certo lugar no meio da floresta, parou o caminhão para um descanso ou averiguação da carga e como estaria o ajudante, Miguel dos porcos. Abriu a porta, subia na carroceira, notou que o ajudante não estava. Achou estranho. E gritou: Miguel, Miguel…. E nada. Depois verificou se os porcos estavam em quantidade comprada, vinte porcos. Contou de um a um, não havia os vintes porcos na carga, não havia diminuído, embora suspeitasse do ajudante ter ido embora com alguns desses bichos, mas não. Em vez de vinte porcos havia mais um, a contagem repetida do motorista comprador de porcos, notou, sim, um porco a mais (vinte e um) da compra. Esquisito. Porém, voltou para a boleia e seguiu a viagem agora com medo e mais apressado, por estar sozinho na estrada assombrosa Floresta do Araripe. Não mais parou; acelerou o pé com maior velocidade…

Atravessando a noite, e por volta das três horas da madrugada e já amanhecido o dia, o caminhoneiro freou o Chevrolé num lugarejo, e desceu…. Olhando para cima da boleia, estava Miguel dos porcos bem sentado no gigante, tranquilamente, por ter chegado no fim da viagem sem que houvesse nenhum incidente que afetasse os porcos ou ele mesmo. Todos os vinte bichos chegaram são e salvos na casa do fazendeiro.

O motorista não sabia o que teria acontecido, se Miguel dos porcos virava bicho. E ficou desconfiado, embora calado, sem entender do que teria acontecido. Sem saber que Miguel dos porcos transformou-se num dos porcos da carga que cuidava.

Esta viagem se tornou conhecida por muitos até hoje.

Muito tempo depois, ainda carregando suas pragas, virando bicho, Miguel, uma feita, visto com os próprios olhos do autor que escreve estas linhas, que passa, então, a relatar quando Miguel dos porcos o assuntou num exato dia em que vinha do Cine Cassino, depois de assistir a um filme de Zé do Caixão, que por sinal, um filme de terror. Veja bem leitor, sem se amedrontar com o que viu o próprio autor desta narrativa, que conheceu bem o Miguel e, sim, pode se acreditar, que presenciou também Miguel dos porcos virar bicho:

Vinha eu do cinema da sessão das dez, à noite, e, demorando um pouco na Praça São Vicente conversando com os motoristas de táxi ou jogando damas com um deles, demorei mais um pouco ir para casa. Já era quase dose horas da noite, morava eu atrás de onde havia o Palace Hotel, de frente da ponte do canal do rio Granjeiro, na Avenida José Alves de Figueiredo, no momento de atravessar eu a ponte, escutei um rugindo rouquenho, vindo do lado da parede do canal. Parei, com um susto, não quis eu se aproximar do rugido, mas fui me achegando, e havia algo estranho, cheguei, mesmo com medo e um pouco de coragem de enfrentar o perigo, olhando com cuidado, percebi que era Miguel dos porcos deitado, se encurvando, retraindo os pés, as mãos e todo o seu corpo que era comprido; os pés negros e sujos de tanto andar descalços, estavam retorcido quase que, notava eu, via os cascos dos pés tornando-se de um bicho qualquer; vi as mãos esticadas como garras de unhas de onça. Ainda vendo aquela pessoa se transformando num monstro, não sei o que era, mas sabia quem era, o Miguel dos porcos, vi que era ele mesmo, ouvia-o assobiar aquele assobio característico de tanger porcos, mas também ouvi dele um rugido de um animal feroz já querendo se levantar e correr mundo afora na meia-noite. Eu poderia esperar e ficar até que Miguel dos porcos virasse bicho por completo. Mas, não, temi e corri com passos largos sem olhar para trás, e deixei lá a visão de que Miguel dos porcos realmente virava bicho. Porque eu mesmo o vi, acredite se quiser o leitor, meus olhos não se iludiram nem se fecharam na hora em que Miguel dos porcos continuava em metamorfose. O que não quisera eu era continuar vendo até o final de sua mutação, que todos daqueles tempos sabíamos muito bem que Miguel dos porcos virava bicho.

E, agora mesmo, quando perguntava de alguns amigos que conheceram o lendário e mítico Miguel dos porcos, o que o autor ainda conta é que o Miguel era mesmo um homem simples, trabalhador, com sua profissão de tanger porcos para o Matadouro, que contribuía com a população humana da cidade, no alimento de uma das mais preciosas carnes, das mais gostosas entre outras. E, por isso, devemos lembrar de Miguel que levava os porcos que seriam sacrificados para alimentar a toda cidade do Crato.

Era lá do Matadouro onde se produziam as carnes de porcos para os açougues e mercados desta cidade. E, foi, na verdade, todo o trabalho dedicado, de Miguel dos porcos, que tanto o vi, o acompanhei durante todo àquele tempo dos anos idos. Quando Miguel dos porcos viveu todo o seu tempo de vida como tangedor de porcos. Embora com a sina de que espalharam que Miguel virava bicho, lobisomem. O que o tornou uma das figuras de nossa mitologia. Miguel dos porcos ficou conhecido e na lembrança de toda a gente do seu tempo. Com a sua contribuição, pelo seu trabalho humilde, mas digno de notas.

Era assim o Miguel dos porcos. Mesmo virando bicho.

Autor:

João Bosco de Sousa Rodrigues

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