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segunda-feira, 17 de junho de 2024

Da escola sem partido ao crianças sem escola

Talvez por causa da completa incompetência dos vários ministros da educação do governo Bolsonaro o principal tema ligado a educação nas eleições de 2018 atualmente se encontra esquecido. Ninguém mais fala do “escola sem partido”. Mas no apagar das luzes do atual governo aprovou-se por iniciativa da bancada governista um projeto de lei que normatiza o ensino domiciliar, também chamado de homeschooling. Não é difícil perceber que por não conseguir retirar o “partido” da escola a tropa governista agora esta tentando tirar as escolas das crianças.

Estranhamente esta é a única proposta de grande alcance do atual governo na área da educação, mesmo sendo um dos assuntos centrais da militância bolsonarista. E ainda mais estranho que a iniciativa não tenha ocorrido durante o distanciamento social imposto pela pandemia de corona vírus. Durante quase dois anos a realidade educacional brasileira foi forçada a ir para o ensino a distância, sem nenhum período de adaptação, no improviso. Para os defensores do modelo de ensino domiciliar era uma chance única de se iniciar o debate sobre as vantagens da ideia, bem como quais seriam as adaptações necessárias para que os alunos não acabem sendo prejudicados por esta modalidade. E nada foi feito neste sentido.

Juntando este fato com a aprovação do Projeto de Lei em regime de urgência é possível perceber que querem impedir a realização de um amplo debate com a comunidade de pais, alunos, professores e educadores. Infelizmente uma manobra muito comum durante a legislatura presidida por Artur Lira, a aprovação com urgência de projetos de lei não urgentes servem apenas para evitar que estes projetos não sejam debatidos nas comissões temáticas. E é nas comissões temáticas que é factível se fazer a parte mais democrática do processo de aprovação de um projeto de lei, as consultas públicas.

Damares Alves e Abraham Weintraub assinam o texto do Projeto de Lei 2.401/99. Uma ligada a bancada evangélica, outro um dos principais olavistas que passou pelo governo Bolsonaro. Ao perceber isto que podemos analisar qual são as intenções políticas por detrás deste PL.

O principal argumento apresentado pelos defensores do ensino domiciliar é o direito que a família tem sobre qual ensino fornecer a seus filhos. Mas há duas questões que os defensores não abordam. O direito da criança e do adolescente de ter uma educação que capacite o aluno a suas atividades profissionais e garantir a qualidade de vida como cidadão. E o dever do Estado, conforme previsto na Constituição, de oferecer este ensino a todos os brasileiros.

A escola não representa somente a principal garantia que o aluno tenha um convívio social, mas também a garantia de que o aluno seja exposto aos valores plurais e diversos de nossa sociedade. É verdade que a família tem o direito de decidir a melhor forma de educar seus filhos mas este direito não pode servir de escudo para a doutrinação dos filhos pelos pais a ponto de prejudicar a liberdade individual que todos temos. Tanto o estado e a sociedade tem o dever de  impedir que famílias mal intencionadas abusem da autoridade que possuem sobre os filhos para impedir que estes desenvolvam plenamente sua liberdade de opinião.

E é exatamente na parte da doutrinação que finalmente podemos unir a proposta de ensino domiciliar com o já esquecido projeto de “escola sem partido”. Acuse-os daquilo que você faz é uma velha tática olavista, adotada a tal extremo que acusam falsamente de ser um lema de Lênin. A retórica dos defensores do “escola sem partido” era a que o atual ensino público brasileiro sofre de uma doutrinação partidária da esquerda (o famoso marxismo cultural olavista). E para evitar que esta doutrinação permaneça, seria necessário limitar a liberdade dos professores para evitar que estes contrariem os valores familiares do aluno.

Os principais tópicos que incomodavam os defensores do “escola sem partido” eram o ensino das questões de gênero e orientação sexual e pontos históricos supostamente polêmicos, como se o Golpe de Estado de 1964 foi um golpe. Alguns também colocariam nestes temas a serem evitados a evolução biológica, ou o holocausto nazista, ou as religiões de matriz africana. E obviamente educação sexual  que fosse além de falar de DST´s e abstinência sexual.

O que se tentava fazer era evitar que os alunos fossem expostos a visões contraditórias. Que uma criança não conhecesse outra visão além daquela defendida por sua família. E agora que estes grupos não conseguiram retirar o debate plural das escolas, resta então a hipótese de retirar as crianças das escolas, para que não sejam expostas ao inexistente marxismo cultural.

Não entra no raciocínio destes grupos que o desenvolvimento social de uma criança pode ficar seriamente comprometido sem o ambiente escolar, a primeira sociedade mais ampla que a família que uma criança conhece. E ainda esquecem a função de proteção e fiscalização das escolas contra a violência doméstica e até sexual. Professores e educadores são a principal defesa das crianças contra famílias abusivas.

Isto significa que o ensino domiciliar deva ser proibido para toda e qualquer situação? Talvez não. Não sou especialista para compreender todas as facetas e situações. Mas com certeza a decisão sobre se devemos permitir famílias a educar suas crianças sem escolas e quais medidas de regulamentação e fiscalização seriam necessárias caso autorizemos esta modalidade de ensino deve ser feita de forma ampla, democrática e sem falsas urgências.

Cabe a pais, alunos, professores, pedagogos e educadores analisar a complexa questão dos limites do direito da família sobre a educação de seus tutorados. E não a um grupo pequeno e não representativo aproveitar um momento político tumultuado para permitir que famílias extremistas doutrinem as crianças brasileiras.

Sem a participação da sociedade corremos o risco de criar uma geração de crianças incapazes de pensamento crítico plural, e de conviver com a diversidade de opiniões. Em um mundo de fake news e negacionismo isto se torna especialmente perigoso.

Autor:

Aniello Greco

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