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terça-feira, 23 de julho de 2024

O direito não pode ser uma obra aberta

O caso Daniel Silveira está recheado de polêmicas. Desde o nascedouro, que vem lá do Inquérito das Fake News, passando pelos possíveis limites do instituto da graça presidencial, e chegando até mesmo se o caso deveria ser assunto de destaque na mídia ou se deveria ser tratado como uma cortina de fumaça para obscurecer o real debate político.

No Direito temos a questão da interpretação de texto, ou, em juridiquês, a hermenêutica. Apesar de não haver debate sobre qual é o texto da lei, sempre haverá debate sobre a devida interpretação da lei.

A constituição estabelece, sem qualquer dúvida, a prerrogativa do presidente de conceder a graça presidencial. Mas como aplicar esta prerrogativa no caso concreto gera um enorme detalhamento de meandros jurídicos, criando um emaranhamento de teses fazendo tudo virar um enorme cipoal jurídico. Desculpem, mas o uso de termos estranhos e confuso aqui foi proposital. É como o público geral recebe o que vem sendo divulgado do assunto.

Para chegar no público geral, em nós, cidadãos, é preciso sair deste uso de palavras rebuscadas e jargão técnico, é preciso chegar na língua cotidiana. E nisto a mídia tem fracassado miseravelmente. O público assiste um monte de posições e acaba traduzindo, de forma simplista, em termos de ser de situação ou oposição. Mas este debate não é mais um debate sobre ser bolsonarista ou petista. É um debate sobre a relação entre os três poderes.

Na crítica literária temos o conceito de obra aberta, defendido por Umberto Eco. O significado de um livro, um conto, uma música, ou qualquer texto não se limita as pretensões e objetivos do autor da obra. A partir que a obra atinge o público, outras leituras além das pretendidas pelo autor se tornam igualmente legítimas. Desde que fundadas no texto, as diversas visões e relações do texto com a vida real surgem, e não existiria uma autoridade que tenha primazia sobre qual é a interpretação correta e definitiva. Todas interpretações consistentes com a obra merecem ser analisadas.

Mas este conceito de obra aberta não pode ser transportado para o direito.  Visto que um dos objetivos do direito é resolver conflitos, é necessário que em determinadas situações alguém tenha a palavra final. O direito de errar por último, por assim dizer, visto que não existe intérprete infalível.

Dentro da teoria da tripartição de poderes, caberia ao Poder Judiciário a função de interpretar as leis, e, portanto, caberia a Suprema Corte a última interpretação da lei. Mas isto não significaria transformar o Estado Democrático de Direito em uma espécie de Ditadura da Toga? Não. Isto por causa de dois fatores.

O primeiro fator é que o Poder Judiciário é o poder com mais restrições de iniciativa. O que isto quer dizer? Isto quer dizer que os poderes Legislativo e Executivo agem de iniciativa própria,  podem decidir tentar resolver problemas da forma mais conveniente, dentro de seus limites. Já o Judiciário precisa ser provocado (exceto em situações muito específicas). O Judiciário não pode resolver iniciar um processo jurídico por conta própria. Não pode decidir que problemas irá analisar. Um juiz só julga causas que lhe são trazidas por outras pessoas. Neste sentido, o STF tem o direito de errar por último, mas apenas sobre as questões que lhe são perguntadas. O STF não pode trazer a interpretação final sobre questões que ninguém pediu sua análise.

O segundo ponto são os famosos pesos e contrapesos. Apesar de não ser possível contradizer a interpretação final do STF, os membros do STF são indicados pelo Executivo, aprovados pelo Senado Federal, e podem ser afastados pelo Senado Federal caso extrapolem suas prerrogativas.

Ainda há um último ponto que é a questão de que os membros do STF não são eleitos. E apesar de isto parecer um problema, na verdade é uma garantia de segurança e autonomia jurídica. A função principal do STF não é política, e as decisões dos Ministros da Corte Constitucional não devem sofrer a influência do debate momentâneo da política e da opinião pública. O Judiciário é necessariamente o poder que não é baseado na representação do povo, e sim na interpretação da lei escrita e executada pelos representantes. É essencial que o Judiciário tenha a capacidade de ser impopular para ser legitimamente legal.

É dentro deste contexto que devemos interpretar o caso Daniel Silveira. O primeiro ponto é que a iniciativa do Inquérito das Fake News partiu do próprio STF, o que representa um ponto perigoso quanto a como controlar os limites do judiciário. Contudo este erro parece, na minha opinião, ter sido parcialmente sanado com a entrada posterior do Ministério Público Federal, entidade que detém prerrogativa de iniciar inquéritos.

Agora, com a graça presidencial, o Chefe do Executivo se utiliza de uma prerrogativa legal para anular os efeitos práticos de uma ação da Suprema Corte. A ideia de que a graça presidencial não seja passível de revisão por parte do STF é uma violação da ideia central da função do STF.

Ao tentar justificar uma interpretação de que a graça presidencial é inquestionável, estamos indo contra a boa doutrina, contra a ideia de equilíbrio de poderes. A doutrina mais básica, vinda da ciência política, nos ensina que a divisão entre os poderes surge exatamente para impedir que o governante tenha direitos absolutos.

É isto que está em jogo. E por mais que os problemas reais do povo sejam o preço do gás, a inflação, o desemprego, a pandemia (não, não acabou); o debate sobre se o presidente tem um poder que não pode ser controlado é grave o bastante para ser muito mais que uma cortina de fumaça.

Um dilemas centrais da democracia é o tão falado paradoxo de Popper. Se a democracia tolerar as iniciativas diretas de exterminar a democracia, ela correrá riscos de deixar de existir. Neste caso temos exatamente isto. Se tratarmos a interpretação da graça presidencial como um mecanismo de anular o judiciário, e preservar aquele que ataca o judiciário, estamos, em nome de uma suposta obra aberta, em nome de um suposto direito de interpretação, permitindo que se anule o essencial direito de errar por último, exclusivo do STF.

Autor:

Aniello Olinto Guimarães Greco Junior

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