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sábado, 20 de dezembro de 2025

Democracia à moda São João del-Rei: pode cantar, desde que desafine a consciência

Em São João del-Rei – MG, a cidade que se orgulha da tradição barroca, o que está em alta agora é outro estilo: o barroco mental, cheio de curvas para justificar o injustificável, como cancelar o show de Maria Gadú e flertar com o cancelamento do show de Alcione porque, vejam só, elas têm posições políticas. Aí não se fala mais em música, cultura ou festa popular, fala-se em purificação ideológica de palco, como se o microfone viesse com teste de fidelidade partidária embutido.

O roteiro é simples e previsível, quase um playback: o vereador Luiz Felipe Maciel, da base do prefeito, vai às redes sociais, acusa Maria Gadú e Alcione de “militância radical em cima do palco” e pede que os shows dos dias 6 e 7 de dezembro, no Largo do São Francisco, sejam cancelados, pois seriam um “erro” da Secretaria de Cultura para o aniversário de 312 anos do município. O pecado mortal das artistas? Gadú ter cantado em ato do MST e entoado palavras de ordem como “Lula livre” e “sem anistia”, Alcione ter criticado Jair Bolsonaro e defendido o povo nordestino; enfim, ousaram ter opinião e não pedir desculpas por ela.

Pressão feita, o “milagre” acontece: o show de Maria Gadú, marcado para 6 de dezembro, é efetivamente cancelado pela prefeitura, com anúncio em redes locais e veículos regionais, enquanto se fala em mudança de programação e em cumprimento de lei municipal “Prata da Casa”, como se de repente o problema fosse apenas priorizar artistas locais, e não a patrulha ideológica que veio antes. É curioso como a tal “lei” só vira prioridade exatamente quando um setor conservador se incomoda com uma cantora que já subiu em palco do MST e não esconde o alinhamento progressista; até ontem, a programação com Gadú e Alcione era divulgada com orgulho oficial, inclusive em posts celebrando as atrações do aniversário da cidade.

Enquanto isso, Alcione segue oficialmente na grade, com show gratuito previsto para o dia 7 de dezembro, mas sob o gostoso clima de ameaça pairando no ar, porque o mesmo vereador que pediu o cancelamento de Gadú também “alertou” contra a presença da maranhense, que ousou postar vídeo rechaçando Bolsonaro em 2019. É a típica chantagem moral travestida de zelo pelo dinheiro público: “não temos nada contra o talento, só contra a militância”, como se exigir neutralidade de artistas pagos com recursos públicos significasse amputar da cultura exatamente aquilo que a torna relevante: posição, crítica, incômodo.

A cereja desse bolo cívico é a comparação “sutil”: o mesmo discurso que ataca Gadú e Alcione elogia artistas como Elba Ramalho, que já se alinhou ao bolsonarismo e chegou a interromper manifestação crítica em show, mas que, na narrativa local, aparece como quase “apolítica”, aceitável, palatável, decorativa. O recado é claro e pedagógico: artista de direita é “opinião”, artista de esquerda é “militância radical”; cultura alinhada ao poder é “tradição”, cultura dissonante é “inadequada para o povo de São João del-Rei”.

No fim, não é apenas um show que cai da programação, é o verniz democrático que escorre pelo ralo enquanto se aplaude censura com cara de gestão responsável. Cancela-se Maria Gadú hoje, tenta-se cercar Alcione amanhã, e assim se ensaia uma cidade em que o palco ideal é aquele em que ninguém pensa alto demais, ninguém canta fora da cartilha e a plateia aprende, bem comportada, que democracia é isso aí: você é livre para cantar, desde que a música agrade a quem manda no som.

E aqui está o toque final de ironia: são os mesmos que bradam aos quatro ventos sobre a importância vital da liberdade de expressão, defendendo-a até com unhas e dentes – desde que essa liberdade seja uma monótona e silenciosa réplica do pensamento deles. Com sorte e muita discrição, você pode até abrir a boca para cantar, só não espere desafinar na ideologia dominante, pois aí o microfone é cortado, a luz se apaga e o “libertador” vira carrasco, numa aula magistral de como amar a liberdade de expressão à distância – mas no grito, censurar quem ousa ter opinião contrária é o verdadeiro hino nacional. Pode mentir sobre a pandemia da Covid, causando o desastre de mais de 700 mil mortes, pode sujar reputações com mentiras espalhadas por canais oficiais, pode defender golpe de estado e a volta da ditadura militar, mas se o seu lado político é à esquerda, bem, aí não pode sequer subverter o roteiro da peça ensaiada por essa trupe do cancelamento.

Manuel Flavio Saiol Pacheco
Manuel Flavio Saiol Pacheco
Doutorando e Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Desenvolvimento Territorial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).. Possui ainda especializações em Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Docência Jurídica, Docência de Antropologia, Sociologia Política, Ciência Política, Teologia e Cultura e Gestão Pública e Projetos. Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da 14º Subseção da OAB/RJ, Servidor Público.

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