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sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Sublime

Comecei a escrever poemas com sete anos. Meu mundo, desde cedo, era povoado por canetas, papel, poemas, fantasias e literatura. Em casa ninguém gostava de ler, não tínhamos livros nem revistas, nem uma Bíblia. Somente aos domingos meu avô comprava o Estadão.

Um dia, devia eu ter uns dez, onze anos e muitos poemas já escritos, tive a oportunidade de mostrar meus textos para um vizinho que morava duas casas mais à frente, na mesma calçada. Esse vizinho, até então desconhecido, me convidou para conversar. Fui. A casa que eu só conhecia por fora se revelou por dentro um mundo alucinante, diferente de tudo o que eu até então tinha visto. Pela primeira vez vi uma biblioteca, um cômodo só com livros de escritores que fui conhecendo, lendo e amando, como Balzac, Stendhal, Galdós e vários outros. A literatura passou a ser uma poderosa presença em todos os meus dias. Concretização de muitos sonhos, muitas janelas abertas para horizontes coloridos e muitos poemas escritos, além de inúmeras ideias anotadas.

Quem era esse vizinho e novo amigo misterioso que morava numa casa semidestruída na Bela Vista? Era Lima Barreto (1906–1982), diretor, produtor, roteirista e diretor de fotografia. Cineasta que dirigiu O Cangaceiro,em 1953, primeiro grande sucesso internacional brasileiro. No Festival de Cannes de 1954, O Cangaceiro lhe daria o prêmio de melhor filme de aventura. Lima Barreto morreu aos 76 anos, no dia 24 de novembro de 1982, de insuficiência cardíaca num asilo em Campinas, São Paulo.

O Estadão passou a ser o jornal não só dos domingos mas de todos os dias, assim como o Jornal da Tarde, Veja, Manchete, O Pasquim, livros, revistas, letras de músicas, poemas e as amadas aulas de português. Fui conhecendo os códigos, aprendendo as emoções da vida de escritores, fonte de inspiração para inúmeros poemas. Biografia era minha leitura preferida.

Fui descobrindo também a força das palavras, o poder de escrever, de ler. Principalmente ler. Lima Barreto me disse uma vez que quanto mais lemos menos manipulados somos. Mas eu tinha uma dúvida, uma grande dúvida.

Nunca consegui entender o significado da palavra sublime. Sabia que sublime é um adjetivo que qualifica aquilo que atinge um grau muito elevado na escala de valores. Achava a palavra especial e as explicações não me convenciam, eu queria saber mais. Procurei nas religiões, mas logo percebi que todas envolvem autoescravidão, além de se aproveitarem das pessoas que sofrem, nada sublime. Consultei a Enciclopédia Britânica, conversei com meu professor de português, pesquisei em livros… Sem sucesso, nada de encontrar uma resposta adequada. As palavras precisam ser sentidas como se sente o espírito, o silêncio ou um quadro de Diego Velázquez ou de Claude Monet. Sem esse sentimento nunca vamos ser totalmente livres. Patti Smithdisse que as palavras nos aproximam daquilo que as pessoas chamam de Deus.

Continuei escrevendo poemas, rabiscando ideias e, mais tarde, também letras para músicas, sem nunca usar a palavra sublime.Escrever é uma busca, um ato de pureza, e não se deve usar palavras desconhecidas.

Um belo dia fui convidado para um evento cultural. Era o lançamento de um livro de poesia. Aceitei o convite, me arrumei, terno preto e sapatos verdes, e fui no evento. Lá conheci uma escritora. Conversamos bastante, trocamos ideias e combinamos um lanche para breve.

Depois de muitos lanches, passeios (é fácil caminhar sem tocar o chão quando você me acompanha), trocas de livros, conversas inteligentes (a gente se encontrava sempre na Paulista), a escritora comentou que seria bem legal, na próxima vez, tomar o café da manhã em minha casa. Era um sábado e ela apareceu bem cedo com pão ainda quente, bolo, guaraná e um presente embrulhado com muito bom gosto. Mas tudo ficou na mesa, inclusive o presente ainda embrulhado. As cortinas abertas e as roupas pelo chão…

09:22 AM

TUAS MÃOS AFAGAM OS MEUS CABELOS

E A TUA BOCA RESPONDE AOS MEUS APELOS

TEUS SEIOS SE ACOMODAM NO MEU PEITO

E A TUA NUDEZ SE ESPALHA NO NOSSO LEITO

TUAS COXAS SE ENTRELAÇAM NO MEU PESCOÇO

E FAZEM VIBRAR O DESEJO QUE ME CAUSA ALVOROÇO

10:44 AM

TEUS PÉS ACARICIAM OS MEUS SEGREDOS

SINTO NOS MEUS LÁBIOS O GOSTO DOS TEUS DEDOS

QUE BRINCAM COM VOCÊ NA MINHA FRENTE

E SE EMBARAÇAM PORQUE TEU CORPO AINDA SENTE

TUA VOZ SUSSURRA PALAVRAS IMORAIS

E ME ENLOUQUEÇO COM TEUS GESTOS SENSUAIS

Você me abraçou e antes do beijo de despedida comentou: “A maioria dos homens nos acariciam como se estivessem esfregando a Lâmpada do Aladim. Mas com você foi diferente, foi Sublime”.

Finalmente entendi o significado dessa palavra cujo sentido persegui durante a metade da minha vida.

Feliz, sentei no sofá azul, fazia muito calor e resolvi deixar minhas roupas ainda pelo chão. Com o corpo ainda coberto com o teu suor, desembrulhei o presente, um CD que coloquei rapidamente no player, e o Rei começou a cantar: “de repente você entra no meu mundo e descobre sutilmente os meus segredos…”.

A partir desse instante minha vida passou a ser simplesmente Sublime! Antes da música terminar, você me ligou da Linha Azul…

Autor:

Heriberto Noppeney

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