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sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Dingo bang! Dingo bang!

Sempre tive a teoria de que criminalidade, em sua astúcia perversa, descobriu que estrondos de rojões camuflam muito bem os tiros de um calibre 38; isso dissimulava os assassinatos cometidos nas noites de natal.

Certo, pode ser uma teoria rasa, mas, para uma criança, tem boa elaboração. E isso sempre me bastou pra explicar o fenômeno dos homicídios nas noites de 24 de Dezembro, na periferia de São Paulo na década de 90. E não eram poucos. Era preciso atenção; nas efusivas comemorações da meia-noite um cadáver brotaria de súbito e empoçaria de sangue o asfalto.

Nós, crianças nos escondíamos: empanzinados de refrigerante com salada de maionese. Mas havíamos ganhado roupas novas, e o investimento, o banquete, a comunhão dos parentes, juntados de toda parte da cidade, não poderia ser interrompido, qual fosse o motivo.

Como todo susto é coisa que passa, seguia-se a festa -pra quem ainda estava vivo. Continuávamos estralando inocentes biribinhas e riscando o ar com as faíscas que saltavam da palha de aço em chamas. Os mais velhos bebiam, até surgir uma discussão pelo motivo mais fútil e alcoólico. Também ligeiros perdões que só o álcool é capaz e o rastejar de sapatos num forró que remetia a vida pregressa no sertão do nordestino dava o tom.

São minhas remotas e infantis lembranças natalinas. Dai em diante, já adulto, tudo é amnésia decorrente de doses hiperbólicas de conhaque vagabundo, pinga com limão e cocaína. Tenho pouca ideia dos meus natais, deste então. Um flash ou outro me permite alguma recordação, como o dia 25 de um dezembro desses em que acordei de baixo de um viaduto no decadente Glicério. Sujo, humilhado e com uma ressaca moral que foi capaz de me mover em outra direção. Assim, decidi que aquilo bastava. Então, são seis anos limpos. Seis anos e ainda não sei como me comportar em datas como essas. Fico aturdido, deslocado, acanhado. Não sei como me comportar.

Contudo, neste 2023, achei que deveria ser diferente: comprei camisas novas pra resgatar alguma sensação antiga, ou nem mesmo minha, mas coletiva. Mas, dia 24 apenas me entreguei à cama, à lassidão absoluta e adormeci, deixando as camisas intactas. Não sei mesmo como me comportar.

Somente acordei durante a madrugada por gritos e estampidos. Ladrões invadiram a casa ao lado. O vizinho, impetuoso, entrou em luta com eles, tomando a arma numa façanha desesperada e matando um, ali mesmo, na sala decorada com pisca-piscas e um pinheiro de plástico.

Perdi o sono por algum motivo. Fiquei lendo notícias online e uma dava sobre o cancelamento do natal em Belém. A mesma do aniversariante: Jesus, o palestino. Não é difícil entender que fica impossível comemorar qualquer coisa onde crianças foram explodidas e a terra dizimada. Para casos assim, não há rojões capazes de abafar bombas militares.

Ouvi, ou li em algum lugar- não tenho certeza- que um homem é toda a humanidade. Pois bem, Já se vão anos e eu não sei me comportar.

Autor:

 Ítalo Leite Saraiva Saldanha 

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