Pedro Vendrell, escritor espanhol nascido em Barcelona, é autor de livros sobre o cotidiano da trágedia humana, os abismos da existência e dos vazios nunca resolvidos. Ele tem o costume, quase uma tradição, de lançar com exclusividade cada livro seu na Fnac de Barcelona, que fica na Praça Cataluña, no centro da cidade. O mais mais conhecido, Pasadizos que esconden monstruos, foi publicado em 2021.
Vendrell tem um grande amigo, Emilio Pineda, fotógrafo e poeta, nascido não em Barcelona, mas também na Catalunha. Pineda não consegue aceitar totalmente que nasceu na Espanha e nos momentos de desespero chega a duvidar. Procurou em vão durante anos o “livro de reclamações” no céu, sem sucesso, como nas novelas de Franz Kafka. Além de ter nascido no país errado, é europeu e branco e tem nas veias sangue alemão, belga, judeu. Com esse modelo tóxico, a patologia descontrolada e a raiva são gritantes. O trabalho fotográfico de Pineda relaciona atitudes e condutas automatizadas e doentias do ser humano, abordando questões como a intolerância e a necessidade de seguir padrões comportamentais.
Pineda foi criado no Bixiga, bairro da cidade de São Paulo, no Brasil, povoado por imigrantes italianos, de onde nunca quis sair, mas o destino imposto lhe armou uma trama folhetinesca que embaralha até hoje a rota da viagem da sua vida. Nas inúmeras tentativas de voltar, nunca conseguiu entender os movimentos dos barcos. Ele é “apenas um rapaz latino-americano”, como Belchior, tem no sangue e nos músculos o deserto de Atacama, a beleza azul da Patagônia, as letras e músicas do cantor e poeta guatemalteco Ricardo Arjona e o descanso das avenidas Paulista e Ipiranga, da Praça da República e das “curvas da estrada de Santos”.
Todos esses conflitos interiores não prejudicam a sua amizade com Pedro Vendrell, apesar de Emilio Pineda gaguejar sempre quando precisa falar outro idioma que não seja o português e não saber negociar nem admitir uma cultura diferente. Nada que não seja a América Latina é opção, e sim imposição. E Vendrell é um amigo colonizador que escreve livros. É uma amizade misteriosa que sobrevive talvez pela semelhança das obras que tentam entender a trágica dimensão da nossa existência, como se fossem uma inspiração mútua.
Numa fria manhã de sábado (na Europa todas as manhãs são frias, cinzentas e absurdas), os dois amigos combinaram tomar o café da manhã juntos numa conhecida padaria em Barcelona, La Casa del Pan. Marcaram o encontro na saída do metrô da linha 2, Passeig de Gràcia. Depois de um longo e apertado abraço, começaram a caminhar em direção ao local. O estômago anunciava fome de comida e o espírito, fome de cultura. Nem o escritor nem o fotógrafo tinham o costume de começar uma conversa com as perguntas habituais: “Como vai a saúde?”, “O tempo está mal, faz frio, faz calor”, sempre o jeito mais fácil de começar uma conversa quando não sabemos mexer com as palavras. Pedro Vendrell começou logo a dizer que queria escrever um novo livro e tinha encontrado uma frase muito profunda e inspiradora de Baruch Spinoza: “O máximo de liberdade que o ser humano pode aspirar é escolher a prisão na qual quer viver”.
Emilo Pineda ficou encantado com a frase (é o tipo de frase que ele gostaria de escrever) e, quando ia comentá-la, começou a gaguejar, como sempre quando precisa falar um idioma que não faz parte do seu mundo. Ele não tem certeza absoluta de ter nascido na Espanha nem acredita nisso, pois acha que Deus se enganou. Fora do Brasil ou da América Latina, vai sempre ter que conversar sem usar todas as palavras. Parte do tempo e da vida dele está sendo roubada.
Já na padaria, confortavelmente sentados, na mesa café, chá preto, pão, manteiga, geleia de laranja e bolo, Vendrell foi direto ao assunto: estava pensando em colocar algumas fotos em preto & branco no próximo livro e soltou a proposta. Pineda achou a ideia bastante interessante e pensou: fazer fotos em preto & branco é como escrever poemas com tinta preta em papel branco. Ficou empolgado, tomou chá e gaguejou um sim…
“A trágica dimensão da nossa existência” . O título ficou definido. Essa trágica dimensão é muitas vezes as exigências dos modelos que nos são impostos e impedem a explosão daquilo que está oculto em cada um de nós e talvez sejam a nossa verdadeira face.
Pedro Vendrell perguntou quando Emilio Pineda imaginava começar bater as fotos. Emilio pensou, pensou, respirou fundo e disse: “Antes de começar o trabalho, preciso passar três meses na América Latina para me limpar de tudo que é europeu, comida, bobagens e coisas ruins”.
Dessa vez quem gaguejou foi o escritor!
Autor:
Heriberto Noppeney
Um livro iniciado que chamará a atenção das pessoas que irão querer saber o final dessa história. Mistério , cultura, arte, história de vida envolvem essas linhas já escritas. Parabéns.