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terça-feira, 28 de outubro de 2025

Os monstros que criamos

Há uma incômoda verdade que evitamos admitir: os vilões não nascem, são feitos. A sociedade, com suas feridas abertas e contradições profundas, fabrica os monstros que depois tenta destruir. O cinema, espelho em que projetamos nossos medos e culpas, revela isso com clareza. O Coringa, em sua versão vivida por Joaquin Phoenix, não é apenas um psicopata isolado — é o produto de um mundo que o ignorou, humilhou e riu dele até que o riso se tornasse vingança. O caos que ele encarna não é gratuito; é a resposta distorcida de um homem que tentou pertencer e foi empurrado para a margem.

Do mesmo modo, a Arlequina de O Esquadrão Suicida — carismática, trágica, violenta — surge não como uma figura do mal puro, mas como um espelho das relações abusivas e da cultura de manipulação que a sociedade tolera e até romantiza. A psiquiatra brilhante que sucumbe ao fascínio do crime é o retrato de como o amor doentio e o sistema que o legitima podem deformar até mesmo os ideais mais nobres. E poderíamos ir além: pensemos em personagens como Magneto, cuja vilania nasce do trauma de ter sobrevivido ao Holocausto, ou até mesmo em Walter White, o professor medíocre de Breaking Bad, que se transforma em traficante por ressentimento social e orgulho ferido — o anti-herói moldado pelas frustrações do capitalismo tardio.

Esses retratos são metáforas para algo mais sombrio: os vilões da vida real que emergem das fissuras de uma sociedade desigual e indiferente. Assassinos formados por contextos de miséria, políticos corruptos oriundos de estruturas que premiam a esperteza sobre a ética, líderes extremistas que canalizam o ódio incubado nas massas desamparadas — todos, de certa forma, são filhos legítimos do mesmo ventre que diz abominá-los. Hannah Arendt, ao analisar a banalidade do mal, mostrou como o mal não nasce do demônio, mas da obediência cega e da ausência de reflexão. O mal, quando institucionalizado, torna-se quase administrativo: é o funcionário que cumpre ordens, o cidadão que nada faz, o espectador que aplaude o espetáculo da violência.

A sociedade cria seus vilões quando transforma a exclusão em rotina e o sofrimento em paisagem. Quando o lucro vale mais que a empatia, quando a indiferença é a norma, quando a humilhação é entretenimento — ali se moldam os futuros coringas, arlequinas e walters. A tragédia é que, depois, a mesma sociedade exige que sejam punidos, sem reconhecer que foram, antes, frutos de um terreno fértil de desilusão e descuido coletivo.

Como escreveu Jean-Paul Sartre, “o inferno são os outros” — mas, talvez, o inferno sejamos nós mesmos, quando perdemos a capacidade de enxergar a humanidade no outro. Criamos monstros para justificar o medo que temos do espelho. E, entre aplausos e apedrejamentos, seguimos orgulhosamente inocentes, acreditando que o mal é alheio, quando, na verdade, ele tem nossas digitais.

Manuel Flavio Saiol Pacheco
Manuel Flavio Saiol Pacheco
Doutorando e Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Desenvolvimento Territorial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).. Possui ainda especializações em Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Docência Jurídica, Docência de Antropologia, Sociologia Política, Ciência Política, Teologia e Cultura e Gestão Pública e Projetos. Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da 14º Subseção da OAB/RJ, Servidor Público.

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