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domingo, 21 de abril de 2024

Razão, Emoção, Bicicleta e Casamento

Casar ou comprar uma bicicleta? Essa dúvida aflige os humanos há tempos. Blaise Pascal, francês, matemático, filósofo e muitas coisas mais, escreveu: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”. Dizem Deus fez o homem com a cabeça acima do coração para que a razão fale mais alto que a emoção. Benjamin Franklin dedicou a vida à ciência (razão) e nunca namorou (emoção). Marisa Monte canta: O que é que a gente não faz por amor? Lembram? Há os que privilegiam a carreira em vez de  casar ou ter filhos e há também o bon-vivant, pessoa bem humorada, jovial, que valoriza os prazeres da vida e sabe gozá-los. A celeuma é complexa.

Beto, 36 anos, publicitário, rico, belo físico, boa estampa, é bon-vivant e não quer compromisso. Usa o Tinder e sites de relacionamento para se divertir, mas tem usuárias que só querem fisgar marido. Mesmo com quem busca prazer, é preciso cuidado para evitar perrengues. Dentre seus encontros, Lia criava cobras e dormia com uma delas no quarto; Lu, vegana, quer converter todos; Eva é noveleira; Cacilda faria atriz pornô corar; Teca é linda na foto. Ao vivo é mais feia que mudança de pobre; Magali é militante fanática e discute política até durante tratamento de canal. Cândida teve 29 religiões e processou várias por desvio da fé. Tem ainda as abstêmias doentias e as intolerantes a tudo, que criticam qualquer escolha de cardápio. Mas às vezes pinta alguém legal e Beto leva numa boa, sem compromisso.

Num fim de tarde, deu carona ao Paulão, contador na empresa. Chovia e o amigo convidou-o para um café. Conheceu o Júnior, 6 anos, a esposa Ivete e Suzi, que adora paparicar o sobrinho. Beto suou frio, os olhos vidraram e a respiração ofegou. Suzi é muito linda, sorriso cativante e solteiríssima. Parece menina moça naquele shortinho sensual, blusa frente única, rolando no tapete para divertir o guri. Beto não hesitou quando lhe sugeriram ficar para o jantar e deu cano num encontro do Tinder. Ivete notou o queixo caído e, querendo encaminhar a irmã, convidou-o para o aniversário de 7 anos do Júnior, num buffet infantil.

Para ele, aniversário de criança é um porre, mas aceitou o convite por causa da Suzi. Disse que adora crianças, festas infantis, mas não é verdade. Simula gripe, tendinite, viagem, preparação para colonoscopia, tudo para evitar festa infantil. Jamais marca seus encontros em Praças de Alimentação, combinação infeliz de festinha infantil com comida de avião. Mas o que é que a gente não faz por amor? 

Deletou o Tinder, chegou ao buffet, deixou o presente na recepção e viu Suzi ocupada, ajudando a irmã a receber os convidados. Um garoto de uns 9 anos o abordou e perguntou: tio, o que é moral? Antes de responder, pensou: Não tenho sobrinhos! Por que crianças chamam estranhos de tio ou tia? Sempre tratei os mais velhos por senhor, senhora. Tio é o irmão do pai ou da mãe. Vim à festa por causa da Suzi, tia de verdade, irmã da mãe do Júnior. O mundo está mesmo mudado! Beto parou de divagar, voltou à terra e perguntou:

  • Por que você quer saber isso?
  • Minha tia disse que você é um cara culto. O que é um cara culto?
  • Vamos começar pelo começo – respondi.
  • E por onde mais a gente começa?

Parem o mundo que eu quero descer, pensou. Precisava ganhar tempo para articular resposta razoável, mas quando viu a manada de adolescentes em torno dele, decidiu responder qualquer coisa, para se livrar do grupelho. Antes só do que muito acompanhado! Recorreu aos conceitos de filosofia, que ele estudou, mas não concluiu, citou Sócrates, Platão, Aristóteles, Ética, Estética e Etiqueta. A plateia mirim não dava a mínima! 

  • Huguinho, esquece. Esse cara não é muito esperto – disse Patrícia, uns 10 ou 11 anos, aparelho nos dentes e carinha de enjoada.

Aquilo ofendeu, ainda mais vindo da chatinha sabe tudo. A equipe de animação chamou a garotada para as atividades e Beto pensou ter se livrado das crianças, mas vieram buscá-lo para participar da sessão Torta na Cara. Errou as respostas sobre Animes, Mangás, Games e outros tópicos do universo infanto-juvenil. Todos riram, menos ele, com o rosto coberto por tortas de creme. Lavou-se e voltou ao salão para despedir-se e cair fora. Alegaria gastrite e depois cuidaria da Suzi, mas a galerinha o esperava no salão.

  • E aí, tio. De Anime e Mangá você não sabe nada, mas o que é moral?
  • Bem, como eu ia dizendo…

Beto estava a ponto de explodir quando Suzi aproximou-se sorrindo e disse:

  • Vejo que estão se entrosando. O Huguinho é o caçula da Brenda, minha irmã mais velha. Pat é outra sobrinha. Vai se acostumando com a família. 
  • Tem mais?
  • Muitos mais. Pedi ao Huguinho para te perguntar sobre moral porque você estudou filosofia.
  • Filosofia, sim. Exorcismo infantil, não.
  • Pessoal, vamos cantar “parabéns a você” para o Júnior e cortar o bolo!
  • Já vamos, tia. Na moral! – respondeu Pat pentelha.
  • O que quer dizer “na moral”? – perguntou-lhe Huguinho.
  • Na moral quer dizer sem problemas, tranquilo, de boa.

Então é isso! Gíria! As luzes se apagaram, a cantoria começou e Beto saiu à francesa. Só de birra, pegou o presente de volta. Concluiu que não é bom filosofar com crianças e precisa pensar muito antes de entrar para aquela família. Afinal, disse Nietzsche, no amor, vemos as coisas como elas não são. Mudou o número do celular, mandou e-mail ao chefe se demitindo e reativou seu perfil no Tinder. Tem muita gente doida no aplicativo, mas pelo menos não precisa conhecer suas famílias, nem ir à festas infantis. Beto decidiu comprar uma bicicleta! Vida que segue.

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

15 COMENTÁRIOS

  1. Tive experiência com um bon-vivant. Posso afirmar que sua descrição dessa personalidade foi perfeita, sem tirar nem por. Foram confidências de um amigo ou recordações da terceira idade?

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