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sexta-feira, 26 de abril de 2024

A mãe da noiva, Dark Web e cinzas no café

Até os 21 anos, Tânia quase não sorria, não olhava nos olhos e conversava apenas o essencial. Nunca teve namorado, porque os atributos não ajudam: feição sofrível, franzina, sem curvas e desajeitada. É inteligente, mas homem nenhum se empolga com isso. Não sai de casa, assiste séries policiais na TV, lê muito e passa horas na Internet. Sua história é triste e, infelizmente, bastante comum. 

Abandonada e adotada ainda bebê, Tânia foi criada isolada do mundo. Abusada pelo pai adotivo, com a complacência da madrasta, demorou a falar com desenvoltura e urinou na cama até a puberdade. O pai adotivo morreu quando Tânia tinha doze anos. A polícia ainda não sabe quem o incendiou: mulher, filha ou um estranho. O caso foi registrado como “combustão espontânea” porque o finado era alcoólatra inveterado. Mas o assédio continuou, agora através da megera.

Quando completou o ensino médio, ela quis cursar Direito ou Sânscrito, mas Dora, a megera, criminalista, 48 anos bem disfarçados, exótica beleza e corpo invejável, considera Tânia tão inútil quanto cargo de vice-prefeito e a obrigou a estudar informática, área que não conhece e não vê futuro. Tânia obedeceu e matriculou-se no curso a distância. 

Numa das raras saídas juntas, ela foi com Dora ao ginecologista e depois pararam na cafeteria para um lanche, outra coisa que nunca tinham feito. Surpresa ainda maior foi o doutor Maurício compartilhar a mesa. O jovem e simpático ginecologista, que há pouco tinha inspecionado suas intimidades, sentou-se ao seu lado e conversou animadamente. Tânia corou quando a megera convidou o médico para jantar em casa.

Seu primeiro namoro não tardou a começar. Finalmente alguém olhou para ela, e a achou feia! Tânia assistia filmes românticos e alguns picantes, mas nunca tinha provado um beijo. Maurício lidou bem com isso, não forçou a barra, nem criticou sua frieza e inexperiência. Disse que sua religião condena o sexo antes do casamento, que ocorreria em 5 meses. Dora avisou Tânia que investigaria o noivo para ter certeza de sua lisura. Um mês e 8 mil reais mais tarde, recebeu o relatório: Maurício está limpo, é correto e trabalhador. É o homem certo.

Dora relaxava na banheira do motel, fumando após o sexo intenso e ouvindo os comentários de Maurício sobre a tortura que é namorar Tânia, moça sem açúcar e sem sal. Está sofrendo mais que joelho de freira na semana santa.

  • Prefere que eu leve adiante o caso dos abortos clandestinos? E as mortes por imperícia sua? Sossega o facho rapaz. Mantenha o trato e case-se com ela. Deixe que eu cuido do sexo e do dinheiro. Ela só precisa acreditar em você. É bobinha, vai ser fácil.

Tânia era tudo, menos bobinha. Sabia que pobre só come frango quando um dos dois está doente e que ninguém é bonzinho de graça. Antes do casamento, só no civil e sem festa, exigiu que Maurício a levasse a um motel, apenas para conhecer. Lá chegando, em vez de observar a decoração e curtir a suíte, pediu para Maurício se sentar na cama e abriu seu laptop.

  • Sabe, seu canalha, resolvi tirar proveito do curso de informática que a megera me obrigou a fazer. Busquei ajuda na dark web e invadi os computadores e celulares, seus e da vadia. Nunca houve detetive te investigando. Foi mais uma fraude que vocês armaram para me enganar.

Maurício ficou calado e boquiaberto. Fraco de caráter e facilmente manipulável, apenas acompanhou a narrativa.

  • Contratei investigador, mas um de verdade. Veja essas fotos e vídeos. Reconhece o nó cego entrando neste mesmo motel no carro da Dora? Agora olha isso: anotações de abortos clandestinos que podem gerar processos por exercício ilegal de medicina. Essa criança em fotos íntimas sou eu. Foram vendidas pelos meus pais adotivos para sites de pedofilia. Invadi essa conta também. Outra coisa: perdi minha virgindade aqui, neste mesmo quarto, mas com um homem de verdade, não uma toupeira e falso ginecologista.
  • Eu nunca quis nada disso. Foi sua mãe que me obrigou. Não sou médico. Sou apenas auxiliar de enfermagem que cometeu erros, Dora descobriu e me chantageou. O que eu podia fazer?
  • Vou dizer o que você vai fazer: ou ajuda ou irá para a cadeia, tá? Não haverá casamento. Não darei esse gosto à vadia. Ela tem cirrose avançada, resultado das cinzas que coloco no seu café há anos. Não altera o gosto, corrói o fígado aos poucos e não deixa rastro. Tem dicas ótimas na dark web, sabia? Lembre-se que, se me acontecer algo, alguns parças da web sabem de tudo.
  • Agora é você quem vai me chantagear?
  • Fica na sua, se não, daqui pra frente será só pra trás. Se me ajudar, sairá dessa limpo e as provas desaparecerão. Não há outra escolha.

O corpo de Dora foi cremado um mês antes da data prevista para o casamento, que não houve.  Tânia, única pessoa no crematório, pegou as cinzas e armazenou no fundo do bueiro. A morte por cirrose seria lenta, mas Maurício acelerou o processo com drogas extras. Com os bens e o dinheiro que Dora deixou, Tânia formou-se e ganha muito dinheiro com investigações via web. Maurício foi alforriado e desapareceu, mas sabe que, em algum lugar, alguém sabe o que ele fez no verão passado. Ou isso teria sido forjado?

Laerte Temple
Laerte Temple
Administrador, advogado, mestre, doutor, professor universitário aposentado. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle)

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