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quarta-feira, 24 de julho de 2024

Guedes matou Enéas: bolsonarismo e liberalismo econômico

Na entrevista que o liberal convicto em matéria econômica Paulo Guedes concedeu ao Flow Podcast uma passagem crucial para quem se esforça por entender o complexo fenômeno do bolsonarismo passou despercebida pela maioria dos analistas à esquerda, à direita e ao centro. Mais preocupados com a agenda global de costumes, estes buscam estabelecer o corte da diferenciação em qualquer lugar periférico do fenômeno. Em matéria de macroeconomia e de pressupostos ideológicos sobre a economia nacional e global, sua proximidade impede qualquer delimitação mais nítida e as posições quase coincidem, de modo que enunciá-las faria desmoronar o projeto de demarcar a diferença e aparecer como oposição radical. Para Guedes, contudo, a consciência das diferenças parece estar bastante nítida.

Ele revela que o bolsonarismo logrou produzir uma aliança improvável entre liberais na economia e conservadores nos costumes, aproveitando-se de um forte sentimento antissistema (o que significa, no Brasil, antipetismo, dado ter sido essa força que hegemonizou a construção nacional por mais tempo desde a redemocratização, estendendo a linha mestra da imersão da nacionalidade nos fluxos internacionais de capitais e informações, dissolvendo o corpo material e o espírito nacional – embora seja verdade que o PT tenha se recusado, pelo menos, a promover as privatizações totais de parte do patrimônio herdado do passado nacional-desenvolvimentista).

Mesmo sendo uma explanação muito clara do fenômeno do bolsonarismo, Guedes cala e esconde um fato tão notório quanto perigoso para a estabilidade da aliança, a saber, que a preponderância do liberalismo econômico sobre o conservadorismo dos costumes é total, e principalmente, que o liberalismo econômico está na raiz da dissolução dos costumes e da Tradição denunciadas pelos conservadores. A convivência entre Guedes e Enéas só pode ser promovida e vingar através da ideologia capaz de encobrir estas verdades, que para o próprio Enéas Carneiro eram translúcidas, tendo sido a sua voz a mais estridente a se levantar contra o liberalismo econômico na história do Brasil. Enéas expressava a aliança, muito mais consistente do ponto de vista ideológico, entre o conservadorismo dos costumes e o antiliberalismo econômico, aliança que se mostrou vitoriosa com Getúlio e Juscelino e não prosperou mais desde o abandono da candidatura Lott por Jango (e também, pelo próprio Juscelino, acossado já pelo personalismo) e desde a recusa do PDT de Leonel Brizola, último reduto nacional-desenvolvimentista, a cerrar fileiras com o PRONA, em 2002. Desde então a figura de Enéas tem estado no ostracismo, desconhecida de todos, embora seja bandeira do bolsonarismo – bandeira memetizada, mero adereço estético desprovido de sentido, assim como a bandeira nacional, perfilada ao lado da dos EUA e de Israel, nos comícios bolsonaristas (ou como os broches e camisas do Che Guevara que perfilam ao lado das bandeiras de Venezuela e Cuba, nos comícios vermelhos).

Incapaz de reivindicá-lo, o que se chama de “esquerda” praticamente assume pela sua recusa que a agenda da economia é secundária em relação àquela dos costumes, contribuindo para a perpetuação do véu e a produção das sombras que encobrem, no bolsonarismo, a denúncia de Enéas do liberalismo econômico, permitindo que seja usado, assim domesticado, pelo próprio liberalismo econômico em uma aliança improvável e contraditória. Para o observador atento, alguns fatos mais salientes indicavam com suficiência a sua predominância, sempre explícita sobretudo pela onipresença do Guedes, superministro de maior poder, longevidade e primazia no Governo, mas também pelas pautas escolhidas como principais pelo bolsonarismo, a saber, a de armamento (terceirização da segurança pública e atentado à profissão dos servidores das polícias), a de liberdade de expressão, a liberdade de locomoção (contra o lock-down) e a liberdade de escolha (vacinação), tudo sob o signo da liberdade máxima e irrestrita do indivíduo tida como dogma. O estado não podia obrigar ninguém a ficar em casa nem a tomar vacina, como não podia obrigar a adoção da linguagem neutra ou do gênero, para estas pessoas. O verdadeiro milagre foi isso ter se aglutinado às pautas antiaborto e antidrogas sem contradição, ficando essas questões, junto da desistência da criação de cassinos no Brasil, as únicas concessões da liberdade máxima à Tradição, só possíveis porque apresentadas como restrições não do Estado, mas da moralidade que, embora executada pelo Estado, é exigência do indivíduo e da família, sob o signo da tradição cristã – nada mais que tolerada, pelos liberais. A contradição ficou com o MBL, que rachou e defende a liberdade máxima inclusive nessas questões, tendo uma de suas lideranças se declarado atéia em uma participação no mesmo podcast Flow. O ódio bolsonarista ao MBL se deve, sobretudo, à ojeriza que o conservadorismo dos costumes causa nesses iluminados do cosmopolitismo, que desejam o mesmo purismo e a mesma distância desse conservadorismo “atrasado” e “imoderno” que são reivindicados pela “esquerda” afeita ao turismo, à bolsa de valores e à importação desembargada.

O bolsonarismo, portanto, é mais um fenômeno do liberalismo econômico do que do conservadorismo de costumes, e a posição de poder que a turma da Damares ocupou, mesmo se expressa em termos meramente orçamentários, é absolutamente menor.  Essa aliança improvável de conservadores e liberais só foi possível porque faltou projeto político alternativo que, a exemplo de Enéas, reunisse conservadorismo e antiliberalismo econômico em um arranjo ideologicamente mais razoável, explicitando que a viga mestra de sustentação da família, por exemplo, é a casa e o trabalho, primeiros elementos tornados obsoletos na realidade pós-industrial imposta pelo liberalismo econômico, que extermina os empregos e eleva o custo de vida a patamares proibitivos para a sobrevivência e a reprodução das famílias  (veja o custo das moradias). A esperança, para os verdadeiros admiradores da figura de Enéas Carneiro que sobrevivem, é que a turma do Aldo Rebelo seja capaz de empreender e renovar essa aliança, que pode se tornar hegemônica no ocaso tanto do petismo quanto do bolsonarismo, em 2026.

Mas o PDT de Ciro Gomes parece não se decidir, como em 2002, a seguir o único caminho capaz de fazer prevalecer o nacional-desenvolvimentismo sobre o liberalismo econômico. É, hoje como ontem, uma questão de prioridades. Urge, aos nacional-desenvolvimentistas, recriar o PRONA ou retomar o PTB conservador pós Jango (mas, dessa vez, novamente nacional-desenvolvimentista, como em sua fundação com Vargas), caso o PDT seja perdido.

Autor:

João Batista Magalhães Prates Bacharel e mestre em Filosofia (UNIFESP, 2018 e 2022); especialista em Ensino de Sociologia (UFMS, 2022) e em Gestão e Controle Social das Políticas Públicas (EGC-TCMSP, 2021). Possui pós-graduação em Legislativo, Controle Externo e Políticas Públicas no Brasil (EP-CMSP, 2020).

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