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segunda-feira, 22 de julho de 2024

Não peça para Sísifo gostar de trabalhar

Quando estamos conhecendo alguém, uma das perguntas inevitáveis é “O que você faz da vida?” Respondemos, sem pensar muito na pergunta, descrevendo nossos trabalhos. Isto revela uma questão bem problemática da nossa sociedade. Nós somos definidos socialmente pelo papel que cumprimos nas cadeias produtivas.

E caso você não tenha uma atividade profissional, será visto como um vagabundo, um desocupado, um parasita social. Curiosamente, quando falamos em termos como “consciência de classe” as pessoas torcem o nariz e temem que tiremos o Manifesto do Partido Comunista do bolso. Devemos aceitar que somos definidos pela atividade que fazemos para ganhar dinheiro desde que não usemos isto para questionar as relações trabalhistas que estamos inseridos.

O trabalho enobrece o homem, diz o ditado, mas nunca notamos que o ditado é, em termos de classe social, contraditório. Pois por definição o nobre é aquela casta social que não trabalha. Os nobres seriam a aristocracia, o governo dos melhores. Os melhores da sociedade não precisariam se dedicar as atividades menores, e poderiam se dedicar a filosofia, as artes, a política, etc. Durante milênios o trabalho era a atividade de pessoas menores, da plebe. No Gênesis o trabalho é narrado como castigo divino. O homem passa a ter de ganhar o pão com o próprio suor na expulsão do Paraíso. Durante milênios o trabalho foi visto como um mal necessário, e não como um caminho para se tornar uma pessoa melhor. O trabalhador se submetia a relação trabalhista por coerção e por necessidade.

Modernamente criamos um discurso que é na relação trabalhista que deveríamos encontrar a realização do indivíduo. Algo que me parece um tanto perverso. Em especial em uma sociedade onde cada vez mais a distância entre a atividade laboral e o produto final aumenta. Com a especialização tecnológica, tanto a produção de bens quanto a realização de serviços se fragmenta. Se antes o trabalhador era uma parte significativa no processo de produção, hoje somos apenas uma engrenagem em uma complexa máquina.

Isto me lembra o mito grego de Sísifo, o mais astuto de todos os mortais. Tão astuto que conseguiu enganar a própria morte não uma, mas duas vezes, e com isto enfureceu os deuses. Quando finalmente Sísifo encontra o destino de todos os mortais é condenado a passar a eternidade no reino dos mortos empurrando uma pedra até o topo de uma colina. Mas toda vez que chega próximo ao topo, a pedra escapa e rola colina abaixo, e ele tem que recomeçar. Um trabalho duro, cansativo, e sem nenhum resultado.

O homem moderno cada vez mais se assemelha a Sísifo. Boa parte de nosso dia a dia recebemos uma pedra, rolamos até o topo da montanha, e descemos novamente onde outra pedra nos espera. Não sabemos de onde as pedras estão vindo, nem que uso farão dela no topo da montanha. Não é nosso trabalho.

Isto que acontecia principalmente com operários em linha de produção está invadindo outras relações trabalhistas. O médico que recebe 10 pacientes por dia, analisa sintomas, pede exames que serão feitos por outros profissionais, receita remédios fabricado por outros e quando o paciente melhora deixa de ir ao seu consultório. Relação médico-paciente desumanizada. O músico que produz 20 jingles por mês e nunca vê a reação de seu público ao vivo. O vendedor que entra em contato com o possível cliente e o encaminha para a equipe que terá a solução específica da necessidade a ser solucionada. E por aí vai.

Apenas uma minoria consegue encontrar sustento com a sua atividade favorita (e alguns correm o risco de deixar de gostar dela por isto). Já é muito se encontrar um sustento com algo agradável. E mesmo estes felizardos tem de se submeter a relações de trabalho cada vez mais mecanizadas, onde pessoas são sobressalentes e as relações são impessoais, apenas profissionais.

Qual o sentido de buscar identificação e realização no trabalho? E porque entender que é obrigatório ter um emprego, e que aquele que não trabalha não tem seu valor?

No momento atual estamos em mais uma revolução de relações trabalhistas. O capitalismo financeiro esta se adaptando a Revolução da Informação. E com isto, muitas adaptações serão necessárias. A automatização faz com que as atividades mais repetitivas acabem sendo realizadas por máquinas. E não estamos falando apenas em linhas de produção, mas carros que se dirigem sozinhos, lojas que não precisem de caixas humanos, atendimentos que podem ser feitos por inteligências artificiais, e até mesmo a produção de textos técnicos e meramente informativos produzidos por algoritmos ou coisas similares. Sísifo esta se tornando sobressalente.

Caminhamos para uma realidade onde várias profissões deixarão de existir em poucas décadas. Já está acontecendo. E as novas vagas geradas pela tecnologia demandam muito mais especialização, o que implica em muito mais tempo de habilitação e, portanto, menor acessibilidade. Teremos uma massa de desempregados, que dependerão de programas sociais nos modelos de renda universal, de forma temporária ou permanente.

Mas ainda os gurus que vendem felicidade e realização falam em trabalhar com aquilo que amamos, em se dedicar a sua carreira como forma de encontrar o seu valor. O trabalho como definidor do homem. O trabalho massificado, despersonalizado, hiperespecializado, sem contexto. Sem sentido. Querem que nos identifiquemos como Sísifos, e sejamos felizes.

Espero que encontremos logo outra forma de identificar a nós mesmos. Que um dia, quando alguém nos perguntar “O que você faz da vida?” respondamos coisas como “Sou um ótimo pai de família” ou “faço grandes amizades com pessoas interessantes”. Claro, ainda teremos atividades profissionais. E até poderemos buscar realização nelas. Mas basta de nos reduzirmos a elas.

Autor:

Aniello Greco

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