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terça-feira, 23 de julho de 2024

Estamos negando a regra pela excessão?

Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Chico Buarque – Cálice

Na recente polêmica entre Gregório Duvivier e Ciro Gomes um dos elementos menos comentados foi a piada de Duvivier com o Cabo Daciolo e a crítica de Ciro a esta piada. Ciro estranhamente considerou a piada de Duvivier, uma comparação entre a Santíssima Trindade com Lula, Bolsonaro e a terceira via, como um insulto a fé dos cristãos. De forma similar muitos criticaram a recente fala de Lula em relação ao aborto por ser uma espécie de desafio as convicções morais dos eleitores cristãos. Podemos ainda lembrar os episódios de glossolalia usados por nossa Primeira Dama para dar um tom de que o Espírito Santo tem um lado no atual cenário político brasileiro. Muitos acusaram os que criticaram Michelle Bolsonaro de estar cometendo cristofobia.

Há um enorme zelo e respeito, ou até receio, em se criticar cristãos. Mesmo sendo notório o uso político dos altares religiosos, bem como estratégias de manipulação bastante desonesta por certos líderes religiosos, nunca aceitamos que tal crítica seja generalizada para o conjunto. Seria inaceitável extrapolar o abuso de alguns e transformar isto em um ataque a todos.

Mas se é verdade que não devemos cometer o erro de generalizar, também não devemos fechar os olhos para fenômenos culturais que acabam por contagiar estas atividades. É inegável que a cada eleição temos um aumento significativo de temas religiosos se mesclando com temas políticos. E quando isto acontece, devemos mais e mais estarmos dispostos a ter a mesma liberdade de análise, de crítica e até de sátira para questões políticas e religiosas.

Voltemos a questão da glossolalia de nossa Primeira Dama. O falar em línguas é um fenômeno comum nos cultos evangélicos, uma experiência real e de grande significado para o cristão brasileiro. Mas além da experiência individual podemos abordar este fenômeno também sob o olhar da psicologia. E quando acontece em um contexto político, temos ainda que considerar cenários de falsidade ou manipulação.

Então analisemos três hipóteses. Michelle pode ter fingido o transe religioso, o que seria um insulto imenso contra a crença evangélica. Ou então pode ter sido levada pela emoção, e a glossolalia ser uma expressão de uma grande alegria e emoção. Se não admitirmos estas interpretações seculares, só sobraria a terceira: o Espírito Santo se manifestou por meio da Primeira Dama para manifestar o júbilo divino perante a posse de André Mendonça como Ministro do STF. Percebam o risco que corremos ao recusarmos uma análise crítica a uma questão religiosa vinculada a política.

Bolsonaro usa e abusa deste bem intencionado respeito religioso para transformar seu mandato em uma espécie de missão divina, confirmada por ter sobrevivido ao atentado contra sua vida. Apenas Deus tiraria ele da cadeira presidencial. É através da manipulação deste sentimento religioso que o atual presidente tenta dar outro significado a seu sobrenome de Messias.  

E o apoio efusivo por parte da bancada evangélica a este governo se traduz em uma cadeia enorme de consequências, como perdões de dívidas bilionário em meio a uma crise fiscal, mobilização de militantes para impedir uma criança estuprada de abortar ou ainda transformar em uma batalha campal a proibição de aglomerações em templos no auge da pandemia.

O respeito excessivo a religiosidade atrasa de sobremaneira quaisquer tentativas de debater com seriedade questões como aborto, identidade de gênero, educação sexual em escolas públicas, etc.

Apesar de ser fato que a imensa maioria dos cristãos, católicos ou evangélicos, serem moderados e dispostos a conviver com divergências, também é verdade que as vozes religiosas ativas e presentes no atual cenário político são as dos extremistas, dos radicais, dos sectários. E quando alguma crítica aparece, é recebida por toda comunidade cristã como um insulto a crença. Este não é um cenário tranquilizador ou positivo. Quando os moderados não tem rosto, não tem voz, não tem destaque, a minoria radical se torna a verdadeira face do grupo.

Algo muito similar acontece em outro dos pilares de apoio do atual governo: os militares. Há uma espécie de consenso que os militares mão estariam dispostos a embarcar em uma aventura golpista de Bolsonaro contra o STF ou contra uma possível derrota eleitoral.

Mas assim como na comunidade cristã, estes militares moderados estão, com raras excessões, confortáveis em seu silêncio e seu anonimato. E assim como os cristãos, os militares tem um enorme espírito de grupo para rejeitar com veemência quaisquer sugestões que há um problema na caserna.

Enquanto isto os radicais saudosistas do Golpe de 1964 fazem questão de alardear uma série de absurdos acerca do papel das forças armadas em uma democracia. Generais, Almirantes e Brigadeiros, muitos com cargos políticos, repetidamente dão declarações de caráter claramente golpista, sem sofrer o necessário repúdio de seus pares.

Tanto cristãos quanto militares não estão cumprindo o necessário papel de tentar expurgar a intolerância e a violência cada vez mais manifesta em seus meios. Diante de tanto silêncio e passividade, uma dúvida começa me corroer. A inércia dos moderados não seria cumplicidade? Ou ainda pior, estaríamos negando a regra para contemplar a excessão?

Autor:

Aniello Olinto Guimarães Greco Junior 

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