Vida de pobre é osso

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Estava sem entusiasmo. Pensei não escrever. Existem momentos que a vida parece sem gosto, insossa. Não por falta de assunto. Meu desejo era embrenhar-me em uma mata virgem e sentir o canto de aves e outros animais, desde que não agressivos. Esquecer o cotidiano, a modernidade neurótica que trouxe benefícios e malefícios à humanidade. Espacei a hora de começar esse texto. Por não existir a mata selvagem fui caminhar na selva de pedras. Ver os mercados. Não pretendia comprar coisa alguma. Entrei no primeiro e fiz uma ronda entre suas prateleiras e dependências. Peguei um encarte e saí em direção ao mais próximo dali. Procedi como no anterior e os preços não me atraíram. Suas promoções estavam mais caras que os preços normais do primeiro. A caminho de casa decidi visitar o terceiro. Lembrei que precisava comprar carne, apesar do preço elevado.

Entrei e fiz a ronda entre as prateleiras procurando promoções, mas nada me atraiu. Me dirigi à padaria, que estrategicamente foi instalada nos fundos do mercado. As guloseimas me encheram os olhos. Mas problemas com altos índices de glicose não me permitem degustá-las. Pedi um café sem açúcar e enquanto o degustava olhei em direção ao açougue. Lá haviam anúncios promocionais. Tomei o café e paguei ali mesmo.

No espaço do açougue, peguei a senha de clientes preferenciais, pois meus sessenta anos me dão esse direito. Antes de mim, haviam dez iguais para atendimento. A chamada estava lenta. Acredito que quando atingimos a idade que admite atendimento preferencial ficamos mais lentos, o que não era o caso. A lentidão era da parte dos atendentes, que por sinal eram todos jovens.

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Enquanto aguardava, uma jovem senhora me chamou a atenção com seu comportamento singular. De aspecto humilde, pouca fala. Vestia-se com uma blusa cujas mangas cobriam metade dos braços e uma saia que se estendia abaixo dos joelhos, indicando a possibilidade de ser exigência de sua crença — ou ciúmes do marido —. Em tudo que tocava devolvia ao lugar com o cuidado devido e na posição em que estava antes de pagar.

À espera do atendimento lancei meu olhar para uma fila ao lado. Desta vez tive visão ampliada. Percebi que a jovem senhora não estava sozinha. Ao seu lado, grudado à sua saia, estava um garoto aparentemente entre quatro ou cinco anos. Todo arrumadinho, apresentava cabelos bem cortados, roupas bem passadas e um chinelo, que apesar de aspecto muito usado, estava limpinho como novo. Trazia na boca o dedo polegar da mão desgrudada da saia da mãe. Parecia aborrecido e sequer olhava para os lados.

Me dedico a observá-los. A jovem senhora trazia nas mãos um cesto com alguns produtos que não pude identificar. Debaixo do braço prendia uma pochete de couro. Limitava-se a ficar inerte, mas parecia ansiosa para o momento do pedido ao atendente do açougue. Fixava o olhar nos embutidos pendurados sobre o balcão para mostrar naturalidade.

O atendente grita o número de minha senha. Assegurei-me dos preços anunciados e fiquei aguardando ansiosamente meu pedido dado ao tempo de espera.

A jovem senhora, apoia sua cesta na proteção do frigorífico do açougue e abre a pochete. Penso que para se certificar que o dinheiro que trazia estivesse ali. Naquele instante pude observar suas compras: um pacote de farinha branca, um pacote de sal, uma caixinha de caldo de carne, um quilo de feijão, dentre outras coisas de embalagens pequenas que não me foi possível identificar.

O atendente do açougue trouxe o meu pedido. Como sempre, pedi que me trouxesse ossos, pois como cliente assíduo costumeiramente fazia isso a fim de incrementar o angu de duas cadelas que cuido em minha casa. Sem pestanejar o açougueiro responde:

— Desculpa patrão, mas somente à tarde. A vaca chegou hoje e começou a ser desossada agora.

Perguntei a que horário poderia apanhar.

— Depois das quinze, respondeu. Mas infelizmente não pode ser daquele jeito. A chefia decidiu que os ossos serão vendidos.

Decidi que as cadelas voltariam a comer ração. Da mais barata.

A jovem senhora, ao escutar a resposta do açougueiro, retirou-se com o filho:

No caixa, o garoto puxa a saia de sua mãe e mostra os chocolates acomodados na embalagem à sua frente. Sua mãe balança a cabeça negativamente.

Novamente o menino puxa a saia de sua mãe mostrando o dedo indicador, e, com um olhar sério da jovem senhora o caso deu-se por encerrado.

Ao sair do mercado ouvi o primeiro som emitido entre os dois:

— Vida de pobre e osso, balbuciou o menino.

O entusiasmo brotou e o desejo de escrever também. Graças àquela experiência cotidiana.

Autor:

Pedro Paulino da Silva é Graduado em Ciências Sociais pela FAFI de Cachoeiro de Itapemirim e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

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