“O desespero é um gás.”
– Fausto Nilo.
Em certos momentos, a história aparenta ser um grande ser vivo. Ela passa mal, sente umas dores estranhas e tem alucinações, resultando em uma grande egrégora1 formada por cargas de medos e devaneios que se acumulam no tempo. Esse turbilhão nauseante de sentimentos precede um infausto evento natalício: a chegada do caos.
O ano é 2018. O mundo vomitava conflitos por todos os lados. Nos Estados Unidos e na Europa, em função de diversos distúrbios sociais agravados pela profunda desigualdade econômica, cresce o apoio a projetos políticos extremistas, os quais se beneficiam do indiscriminado uso recreativo da comunicação digital para embrulharem seus propósitos de maneira simples e atrativa. Já imaginaram o que seria dos judeus em outras partes do mundo se os nazistas tivessem essa ferramenta disponível em seu tempo, considerando o brutal e nefasto resultado de sua política alcançado com simples papel impresso?
Brasil. Os primeiros sinais não são tão alarmantes: um escritor, um membro do clero ou um jornalista se destacando por críticas ácidas aos governos constituídos…tudo seguindo com certa naturalidade. De repente, o gás se espalha. O Sheol se abre e acordamos no inferno dos romanos. Violência, medo, angústia, desespero, ódio, ignorância e cinismo iniciam sua escalada. Toda sorte de crimes salta diante da insensibilidade voluntária e involuntária. Se o ser humano é mau por natureza, como se lê em Maquiavel e Hobbes, são nesses eventos que essa máxima ganha sua prova cabal.
Para completar, uma pandemia viral assola o mundo. Naturalmente, não poderiam faltar os que buscavam a todo custo uma explicação exótica. Uma, em particular, me servirá aqui de exemplo. Um conhecido líder religioso brasileiro, no auge da paranoia e alucinação coletiva, onde toda e qualquer sanidade já havia sido arruinada devido à tragédia de seiscentos mil óbitos (número até aquele momento) por ocorrência da Covid-19, bradava como em uma missa profana em orgasmos claudicantes: “deus tem um grande plano para essa nação”, enquanto rasgava-se, cuspia-se e expelia toxicidade em um misto de servilismo e insensatez que só aqueles que caminham ao lado dos belos monstros são capazes de exibir. Meio milhão de óbitos e muitos outros a caminho em uma terra devastada por angústia e ódio e os sacerdotes da carnificina delirando diante da peste real.
Cambaleante, o mundo, embora já houvesse parido a cria, agoniza no pós-parto em espasmos delirantes: quimeras ridículas, dignas somente de quem não apenas não compreende o ofício das ciências, das matemáticas e da filosofia, mas quem o enoja, proliferadas pelos “doutores” da influência digital e reproduzidas por homens e mulheres (em muitos casos, pagos com dinheiro público para tal desserviço) abarrotam a web. A ideia básica é uma só: ir até o fim do sonho/pesadelo. Isso porque, ao atingir certo ponto desse tipo comoção histérica, não é mais possível retornar. O que era objetivo se perde no absurdo, tornando-se uma espécie de rolo compressor (o que não quer dizer que, havendo motivo, tais atos são legítimos, mas, apenas, inteligíveis, pesquisáveis, elucidáveis, não obstante, igualmente odiosos).
E o absurdo enfraquece a luta. É o olhar do judeu desesperançoso em um campo de concentração, o olhar do: “é, a vida é assim” … As épocas dos grandes refluxos históricos são iguais quanto ao imperativo do absurdo: a humanidade deve ser tomada com tanta dignidade quanto a de um pedaço de papel higiênico usado e molhado no asfalto. O mal banal, para usar um famoso conceito da filósofa alemã Hannah Arendt, é um impulso vivo, consciente e sempre à espreita por seus arquitetos, artífices do mal radical, o mais vil, sujo, hipócrita, sádico, como todo o verdadeiro mal tem de ser.
Mas aí entra a última fase do processo: a metafísica do delírio. Como se não bastasse o mal por si, agora, será preciso torná-lo assimilável. Nesse momento, muitos companheiros começam a deixar o barco. É que se, no começo, a euforia não dá ocasião para a racionalidade, em certa altura, as exigências de sua prossecução castigam os neurônios a ponto de um sacrifício suicida: o salto para a degeneração moral, psíquica e social por inteiro. Aí, quem fica já sabe seu destino trágico (e tragédia pouca aí é bobagem) porque a única alça existente a se agarrar é uma fantasmagoria criada por uma palavra aleatória, um gesto louco, um desejo paranoico ou
pelo desespero pessoal. Daí, ao atingir o ápice, a egrégora vai matizando: um fugaz exemplo altruístico, uma imagem de carinho, de tolerância, vai, muito lentamente, abrindo caminho no malcheiroso espaço, desbloqueando sutilmente os mecanismos do raciocínio lógico.
A história vai percebendo que o seu processo de cura iniciara e identifica agora o que lhe causa o dano. Não são mais eflúvios irracionais que se ajuntam e transitam através de cabeças confusas, transmutando frases desconexas indefinidamente que darão tom à nova sinfonia universal que se prenuncia, mas a construção das vias públicas para o encontro coletivo de diferentes indivíduos que terão de lidar com as velhas mazelas do cotidiano e não mais com os problemas dos seus salvadores. Seus diferentes órgãos vão se harmonizando e ela, a história, recomeça do ponto em que o entendimento, atacado sem qualquer dano pela ignorância, reencontra-se. A egrégora se preenche novamente, agora com doses iguais de amor e ódio e a vida, ainda que difícil para muitos, retorna qualificada para todos.
1 Como a maioria dos conceitos ligados às tradições esotéricas, o sentido preciso de “Egrégora” (?????????) é de difícil explanação, definindo-se como um certo tipo de manifestação sobrenatural que se forma a partir da soma das emoções coletivas. Aqui, o termo é utilizado de maneira metafórica, exprimindo o contágio motivacional de uma turba de indivíduos unidos por um objetivo.
Autor:
Antônio Adriano de Meneses Bittencourt, Doutorando em Ética e Filosofia Política na Universidade Federal do Ceará.