Aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto de lei antifacção parece ter sido elaborado não para enfrentar o crime organizado, mas sim para beneficiá-lo, conferindo-lhe novas vantagens, como abastecer-se de armas e munições sob a justificativa de garantir a “segurança nacional”. Afinal, poucos instrumentos políticos são tão eficazes em transformar um discurso de combate ao crime em um verdadeiro incentivo ao seu fortalecimento.
Perdeu-se aqui qualquer traço de vergonha na engenharia legislativa. Basta olhar para trás e verificar quantas operações da Polícia Federal, tão incômodas quanto eficazes, desmascararam os grandes barões do crime, assim como empresários e políticos de alta monta que jamais aprenderam a receber visitas antes das seis da manhã. O que se ganha ao reduzir a força investigativa mais qualificada, bem equipada e independente do país? Talvez o medo dos diversos cães de ataque que, com algemas ou sem elas, continuam livres e protegidos por leis que parecem mais uma armadilha do que uma resposta efetiva ao crime organizado.
A cerimônia de desmonte do que resta da autonomia da Polícia Federal não foi ao acaso. O relator, um personagem bastante peculiar, possui em seu currículo o afastamento da Rota, reconhecida como o grupo policial mais violento do Brasil, por condutas que ultrapassaram os limites da própria lógica policial. Agora, ironicamente, foi designado para redesenhar, em poucas noites e com múltiplas versões do texto, uma nova estratégia de combate às facções criminosas. Sua habilidade em transformar projetos sólidos em esboços improvisados revela a verdadeira intenção por trás dessa legislação.
Ao passo que o diálogo com especialistas, pesquisadores e agentes de segurança com experiência real na ponta foi destroçado por um processo relatorial veloz e superficial, o discurso oficial passou a ser uma tentativa de enganar a opinião pública. Em menos de uma semana, seis versões do texto surgiram, todas sem estudos prévios ou consultas técnicas mínimas, como se o combate ao crime pudesse ser fruto do improviso e do estardalhaço político.
De resto, ao centralizar poderes, a lei enfraquece investigações complexas, dificulta infiltrações e tenta transformar a PF em coadjuvante, quando os grandes grupos criminosos exigem protagonismo, tecnologia e inteligência autônoma. O resultado é mais do que retrocesso, é quase um convite, com tapete vermelho e bufê de verbas, para que as facções sigam crescendo, blindadas pelo improviso institucional e protegidas, ironicamente, pelo excesso de leis mal pensadas. Quando o presépio do lobby político prevalece sobre a experiência da vida real, não há dúvida, vence o crime, perde a República.
Outra camada de ironia necessária está no apoio de governadores como Cláudio Castro a esse projeto. Ele clama por mais ajuda e autonomia da Polícia Federal para seu estado, ao mesmo tempo em que apoia um texto que restringe justamente essa possibilidade. Essa incoerência não é mero descuido, mas provavelmente reflexo de uma motivação ideológica para controlar a pauta da segurança pública. O medo é explícito, de que a aprovação do projeto em sua forma original represente uma virada positiva que dê popularidade real ao governo, além da intenção clara de barrar investigações que atinjam políticos e grandes empresários supostamente ligados ao crime organizado, protegendo assim interesses profundamente enraizados no poder.
Há, portanto, uma suspeita fundada de que esse embate legislativo serve mais para proteger interesses econômicos e políticos do que para combater efetivamente as organizações criminosas. Assim, a esperança de que o Senado desempenhe seu papel de moderador, retificando a bagunça orquestrada pela Câmara, permanece. Como ilustrou o recente episódio do projeto de lei da blindagem, duramente barrado pelos senadores, aguarda-se que essa Casa retome sua função de casa revisora e devolva a legislação à sua versão original, com respaldo técnico, autonomia da Polícia Federal e sem o viés ideológico que agora predomina.
Caso contrário, continuaremos assistindo a uma peça tragicômica na qual as elites políticas apresentam um espetáculo de intenções nobres, mascarando um projeto que, na verdade, visa proteger privilégios, impedir avanços e reforçar uma estrutura de impunidade. Tentamos combater as facções na base do remendo legislativo, enquanto o verdadeiro poder – aquele que interessa a quem manda – se fortalece na sombra, com leis feitas sob medida para perpetuar interesses escusos.

