Há um ano que publiquei a história de Dona Luzia, uma aposentada que tentava sacar um benefício em uma lotérica, mas não conseguiu pois supostamente estava morta. Se se tratava apenas de um erro no sistema de computadores ou uma confusão com a enorme papelada nunca saberemos. Nessa situação, a vontade é de culpar o Estado, mas muitas vezes o problema do Brasil é o brasileiro.
No dia 17 de abril, um acontecimento chocou a nação brasileira. Um homem morto foi levado a uma agência bancária para sacar sete mil reais. Se o homem de Schopenhauer é um macaco cego e robusto controlado por um macaco aleijado que consegue ver, o brasileiro médio é descrito nessa situação: um homem desprovido de qualquer consciência emulado como normal pelo mais perverso egoísmo. E não me importa o que disser a defesa, um fato que não se nega é que Paulo estava tão morto e desalmado quanto os infames brasileiros que repetem a máxima ” levei vantagem” de peito cheio. E eu também não me excluo: aproveito esse trágico momento para escrever mais uma crônica. Aqui continua a história de Dona Luzia para resgatar aquilo que lhe é de direito.
- Você não tem direito à pensão – repetiu a atendente.
- Como não? – indagou Luzia – Meu marido era soldado do exército quando morreu! Recebo pensão fazem 5 anos. -Luzia fora casada com Carlos Inocêncio Santos por 28 anos, que de Inocêncio não tinha nada e os Santos eram todos ocos. Alistou-se no exército aos 18 anos, e só nunca foi expulso porque também sabia das malandragens dos sargentos. Vivia bebendo e atrás de saias até que conheceu Luzia, evento que nada interferiu em sua natureza porém. Se casaram e tiveram uma filha, Sofia, que nasceu com severa debilidade, forçando Luzia a largar seu emprego para cuidar da menina. Assim, ficou dependente do marido, que tinha dificuldade em subir de patente. Quando veio a falecer, uns 5 anos atrás, Sofia já havia se mandado para longe e Luzia passaria a viver da pensão do marido
- Sinto dizer, mas isso foi um erro, você não é viúva de Carlos. Na verdade…
- E o que sou então, se não viúva de soldado?
- Divorciada.
- Mas eu nunca me divorciei dele, embora me viesse a mente com frequência.
- Isso não é comigo, aparentemente houve uma revisão na papelada, ainda não tínhamos digitalizado muita coisa dessa cidade. A esposa do Carlos consta aqui que é Débora Mariana Costa.
De repente, uma mulher saiu detrás da fila, veio andando até o balcão e disse:
- Chamou?
- Não, ainda estou atendendo a senhora aqui. -respondeu a atendente.
- E posso saber por qual motivo meu nome entrou na conversa?
- Você é a megera? – questionou Luzia.
- Cuidado, que eu não sou lavagem para estar na boca de porco. – disse Débora, irritada.
- Mas não deve prestar muito para estar junta do meu marido.
- Parou, parou! – interviu a atendente – Vamos resolver esse B.O. Seu nome é Débora Mariana Costa?
- Sim – responde a própria
- Estado civil?
- Viúva.
- A-ha! Essa é realmente a Débora, esposa do Carlos. Qual a sua fonte de renda?
- Minha aposentadoria e uma pensão.
- Então é você que está querendo roubar minha pensão! – gritou Luzia – Só não recebo essa tal de aposentadoria porque nunca contribui para a receita. Você era a maldita amante do Carlos!
- Chega – gritou a atendente de volta – Você está alterada. Vamos com calma entender quem é que tem direito à pensão do sargento Carlos.
- Sargento? – perguntou Luzia – Mas ele era apenas um soldado.
- Veja, ela nem sabe a patente do meu Carlinhos – disse Débora prestes a chorar – e quer ficar com seu dinheiro.
- Estou chamando a polícia, senhora.
- Mas porque? Eu recebi a pensão por cinco anos.
- Criminosamente, uma vez que já era divorciada dele antes da sua morte. – disse a atendente
- E você pode ao menos me explicar como aquele cretino virou sargento?
- Você tem que entender que mulher prevenida vale por duas -ironizou Débora.
Então, a polícia chegou. Três dias depois chegou o processo. Assim, Luzia se viu em um pesadelo kafkiano do mundo real conhecido como Brasil.