Nos limites da Vila Velha, além das casinhas de pintura desbotada, há um charco gelado em cujas águas negras dormem mistérios ignorados. Quando anoitece e as nuvens cobrem a lua prateada, ventos sinistros dançam sobre a planície produzindo uivos fantasmagóricos que ecoam por toda a vila. E histórias de almas vagueantes atordoam a mente dos moradores daquela inóspita cidade quando deitam-se para o repouso.
Uma dessas histórias hoje é contada e repetida pelos incultos moradores do local, que ignoram o fato de que ela verdadeiramente ocorreu ali mesmo alguns anos atrás, quando a iluminação das vielas de paralelepípedos ainda era feita pelos antigos lampiões a óleo. Essa história fala de um homem que vagava pelo charco usando uma capa preta e uma cartola negra….seus olhos brilhavam na imensidão como duas estrelas que muito vagaram pelo espaço ilimitado antes de pousar no frio vale olvidado pelo tempo.
Ninguém conhece verdadeiramente a origem do homem de capa preta. Porém antiquíssimas histórias sussurradas na alcova lhe atribuem um parentesco sinistro com a gente Kirschesch, os estrangeiros. Alguns lhe supunham ser uma manifestação de algum ser sobrenatural, pois ninguém nunca lhe vira caminhar à luz do sol. O que se sabe do homem estranho é apenas uma alcunha murmurada que lhe deram as pessoas da vila: Tranca-Ruas.
O nome ninguém se lembra do porquê de ser como era, mas algo nele lhes fazia lembrar dos ocorridos da caça às bruxas do ano de 1324, quando o padre Gellert foi queimado juntamente com uma mulher acusados de heresia. O som das flamas se elevara suspeitosamente enquanto os acusados gargalhavam num êxtase de dor e prazer terrificante. Isso fez gelar o sangue do povo do vilarejo e não mais haviam ousado tocar no assunto até correrem as histórias do fantasma de capa preta.
Na verdade, ninguém nunca falou com Tranca-Rua, malgrado todos no lugar terem uma história peculiar sobre seus avistamentos da entidade. A sra.McKenneth o dizia ter visto enquanto lavava roupa à beira do rio. O jovem John Morgan também afirmava tê-lo visto no bosque próximo ao charco. Segundo o garoto, o homem-espírito gargalhava numa clareira ao acariciar um cão errante. Seus olhos refletiam um brilho estranho e sua voz era grossa e firme.
Muitos temem a ira desse homem. Contudo, poucos se recordam que quando Mabell Across, a filha do reverendo se perdeu no charco, ao ser encontrada, revelou com palavras infantis:
-Ele cuidou de mim. O homem sorridente. Ele não deixou ninguém me fazer mal, papai.-
E, de fato, a menina de cinco anos fora encontrada tão saudável e calma após doze horas perdida na planície fria que se poderia supor que ela apenas havia saído para brincar em seu quintal.
A realidade é que ninguém conheceu, de fato, a verdade sobre o homem estranho da capa preta…Tranca-Rua é mistério e sombra. O que há para se declarar com certo grau de certeza acerca disso é apenas que há ainda certas aparições misteriosas e ruídos incognoscíveis que ecoam pela noite densa da charneca fria e insondável aos arredores da Vila Velha.
Autoria:
Ariel Von Ocker, nome social de Gabriel Felipe Montes Lima
Gostei muito do seu texto. Bem escrito, português perfeito, mantém a atenção do leitor até o fim. Parabéns.
?? me alegra imensamente saber disso, Ataide. Obrigadx pelo comentário enriquecedor.