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terça-feira, 23 de julho de 2024

Walküren – As Três Marias

Capítulo Quarenta e Nove

– Não sou de reclamar… mas que demora…

Era Juvêncio, ao lado do pajé e de Torquato….

– Precisa esperar, meu filho… coisas de cunhã…apenas cunhã pode resolver!

– Não entendi….

– As cunhatã de Ceci vão ajudar as moças da cidade…

– Juvêncio, o que o pajé quer dizer…

– Já entendi, Torquato…. coisas de mulheres são resolvidas entre mulheres….

– Isso. Para que as moças se lembrem daquilo que você precisa saber, somente as filhas da Lua podem ajudar…

– Pensei que vocês não adorassem nenhum tipo de Deus, além da natureza…

– E não adoramos. Simplesmente conversamos com os espíritos da natureza. Ceci é a Lua… e é a força feminina que nos auxilia quando Guaraci não tem como nos ajudar sozinho… porque na vida, Guaraci e Ceci muitas vezes tem que se dar as mãos para que as coisas possam ser realizadas.

– Você quer dizer….

– Nem o homem nem a mulher tem o poder de criar o que quer que seja sozinho… os dois tem que se unir para que a força criadora do Universo possa agir…

Juvêncio ficou calado por alguns instantes… e não é que Torquato estava filosófico esta manhã? Geralmente calado, respondia as duvidas de Juvêncio com uma presteza tal que surpreendia o Delegado. Nesse meio tempo o pajé continuava sentado, pernas cruzadas, olhos cerrados, inalando a fumaça que vinha de uma pequena fogueira que fizera em sua frente e que jogara algumas sementes. De vez em quando o agente da lei lançava um olhar interrogativo em direção ao pajé… mas nada além do silêncio voltava para ele à guisa de resposta.

– Você está curioso, não é?

– Como assim?

– Delegado, eu sei que nossos costumes são estranhos para o senhor…

– Imagina… a muito deixei de estranhar as coisas que presencio por esse mundo afora…

– Mas é como eu disse… as meninas estão encantadas pela Iara…e somente Ceci pode quebrar esse encanto.

– Mas…?

– Mas apenas as cunhatã podem estar ao lado delas durante o processo.

– Eu já entendi… e nesse meio tempo?…

– Bom, a gente podia repassar aquilo que já descobrimos sobre Anhangá…

– Que seria?….

– Bem, o senhor descobriu que ele tem penas…

– Eu não chamaria aquilo de penas…

– …o que significa que, de repente, o bicho pode ter a aparência de uma ave… já pensou nisso?

– Não seria um tanto… estranho?

– Seria, claro que seria… mas o que não é estranho, nessa história?

– Você está certo… mas como seria essa ave? 

– Não faço ideia… pelo tamanho que o senhor descreveu, seria quase como uma seriema…

– E?…

– E… bem, eu não sei o que pensar.

– Eu também, não. Uma seriema….

– Eu não disse que era uma seriema…

– Eu sei… mas fico aqui imaginando…

Os dois se calaram. O velho pajé finalmente abriu os olhos. Continuou mais alguns segundos na mesma posição, então esticou os braços, bocejou e finalmente levantou-se… começou uma sessão de alongamento, como se fosse um gato. Finalmente, depois de algum tempo, dirigiu-se aos dois homens…

– As cunhã já vão sair da oca…

– Como o senhor sabe?

– Juvêncio, ele estava ligado ao mundo espiritual…

Juvêncio olhou para Torquato.  Percebeu que este falava sério. Resolveu ficar calado por algum tempo, mesmo porque o pajé não se dignou a responder-lhe. Depois de mais algum tempo… uma meia hora, uns vinte minutos, as seis moças saíram da oca na qual estavam. E, diferentemente da maneira que chegaram à aldeia, agora seus olhos expressavam toda a vivacidade de antes. Ah, sim, talvez estejam se perguntando porque eu disse “as seis moças”… é que três sacerdotisas (seriam sacerdotisas?) da tribo entraram junto com as meninas, para acompanhá-las em sua jornada espiritual de revelação. O pajé ficou fora, pois não era permitido aos homens participar da cerimônia  de Ceci… mas ele pôde acompanhar sua jornada pelo mundo espiritual, até mesmo para poder orientá-las sobre quais caminhos eram seguros e quais eram armadilhas…  mas é claro que você só irá acreditar nisso se você crê em viagens astrais e outras coisinhas…

Izabel afastou-se do grupo e foi até seu cavalo. Abriu seu alforge, retirou um envelope que ali estava e voltou entregando para aquela que parecia ser a líder das cunhã. A moça levou o envelope até seu peito, fechou os olhos e ficou alguns instantes quieta, como se estivesse rezando, fazendo uma oração. Após tal gesto, levou o envelope até o pajé, que o abençoou e finalmente o abriu, retirando de dentro do mesmo um medalhão. Dividiu-o em três, que instantaneamente se tornaram pingentes. Entregou um pingente para cada moça, em uma pequena solenidade… Juvêncio apenas observava aquele festival de rapapés…

Finalmente o feiticeiro dirigiu-se aos quatro… iria falar com Juvêncio e com a moças, ao mesmo tempo…

– Desde o momento em que Araci desceu a Terra e ajudou Tupã a criar tudo o que existe, estes três amuletos também foram criados… são uma proteção contra os feitiços das Tiriricas e de Pirarucu, eterno inimigo de Iara. Vocês três compartilham um poder único, o poder da vida sobre a morte… esse dom lhes foi concedido por Ceci… e enquanto as três se mantiverem unidas, nenhuma força do mal, terrena ou do além, poderá atingi-las. Mas seus amuletos de proteção só as ajudarão enquanto estiverem juntas, não se esqueçam nunca disso…

– O senhor quer dizer que…

– Sim, minha filha… se vocês estiverem longe uma das outras, Ceci não poderá protege-las… pois a pedra é um ser único e para poder ajudar, tem que estar completo…

– O senhor não pode fechar o corpo das moças?

– Não, meu rapaz… esse tipo de magia não é de Tupã…

– Então eu posso levá-la a um…

– Meu filho, não se pode misturar magia. Elas são filhas de Ceci, protegidas de Iara. Se você fizer isso que está pensando… estará condenando essas moças a morte…

– Por que?

– São magias diferentes… e não costuma dar muito certo misturar magias e deuses de origens tão distintas…

– Mas elas já são protegidas por um tipo de magia assim…

– Não, não são… Elas são espíritos consagrados ao Deus Tupã, e sua principal tarefa é escoltar as almas dos mortos até seu reino… mas não contam com nenhuma proteção, desse ou do outro mundo…

– Pensei que…

– Como eu disse, elas não tem nenhuma proteção contra as força do mal, se estiverem separadas. Para que os espíritos  possam protege-las, tem que estar sempre uma ao lado da outra…

– Nossa…

– E nunca… eu disse nunca…devem tirar a lágrima de Ceci de seu pescoço, pois aí estarão realmente sozinhas em suas batalhas…

Depois de várias recomendações às três moças, finalmente o pajé os liberou para seguirem viagem. Juvêncio abria a fila, Torquato a fechava. Era como se estivessem protegendo as três Marias de qualquer coisa que pudesse acontecer… mas Juvêncio sabia que as três não precisavam de proteção. Eram fortes e, além disso, muito unidas. Tudo daria certo.

Tania Miranda
Tania Miranda
Trabalho na Secretaria de Estado de Educação do Estado de São Paulo e minha função é "Agente de Organização Escolar", embora no momento esteja emprestada para o TRE-SP, onde exerço a função de "Auxiliar Cartorário". Adoro escrever, e no momento (maio de 2023) estou publicando meu primeiro livro pela Editora Versiprosa...

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