Ah, o pé direito! A Havaianas, aquela marca de chinelo que já foi símbolo de simplicidade e alegria nacional, resolveu, em pleno fim de ano, cometer o crime mais hediondo do Brasil: dizer que não quer que a gente comece 2026 com o pé direito. Sim, isso mesmo. A empresa não deseja que o brasileiro comece o ano novo com o pé direito. Que ousadia! Que desrespeito! Que atrevimento! Como se o Brasil não tivesse problemas maiores, como inflação, desemprego, corrupção, violência, mas não, o que realmente importa é um chinelo que não quer que a gente comece com o pé direito.
A campanha, com a atriz Fernanda Torres, é clara: “Desculpa, mas eu não quero que você comece 2026 com o pé direito. Não é nada contra a sorte, mas vamos combinar: sorte não depende de você, depende de sorte. O que eu desejo é que você comece o ano novo com os dois pés. Os dois pés na porta, os dois pés na estrada, os dois pés na jaca, os dois pés onde você quiser. Vai com tudo, de corpo e alma, da cabeça aos pés.” É uma metáfora motivacional, uma forma de dizer “vai com tudo”, “enfrente o ano com coragem e atitude”.
Mas, claro, para a direita brasileira, isso não é metáfora. É ataque direto ao pé direito. É uma declaração de guerra ao pé direito. É o fim do mundo.A reação foi imediata e épica. Políticos de direita, vereadores, deputados, influenciadores e militantes do bolsonarismo entraram em colapso moral. O deputado Rodrigo Valadares (PL-SE) foi ao X desabafar: “Havaianas faz campanha política explícita contra a direita. Seguimos firmes na defesa de Deus, pátria, família e liberdade. Por aqui, vamos de Rider, Ipanema, Crocs e outras.” A vereadora Mariana Lescank (PP-RS) também entrou na dança: “As Havaianas: pertencem a esquerdistas (família Salles); contratam esquerdistas (Fernanda Torres); discurso esquerdista (sem pé ‘direito’). Então vamos de Rider, Ipanema, Cartago, Olympikus e Crocs, e deixamos as Havaianas para os esquerdistas.” E o vereador Rubinho Nunes (União-SP) completou o coro: “Havaianas escancarou de vez o viés ideológico ao atacar o ‘pé direito’. Nada de surpresa: a marca pertence ao grupo da família Moreira Salles, a mesma que bancou o filme Ainda Estou Aqui. Transformaram um símbolo brasileiro em panfleto político. Escolheram o pé esquerdo, e o Brasil segue atolado na lama.”O boicote à Havaianas é o boicote mais ridículo da história do boicote. É tipo: “Não vou mais comprar pão porque o padeiro é ateu.” Ou: “Vou parar de usar água porque a Sabesp contratou uma mulher negra.” É um nível de histeria tão absurdo que parece piada, mas não é. É sério. Gente séria, com emprego sério, com família séria, decidindo que o grande mal do mundo é um comercial de chinelo que não quer que a gente comece com o pé direito.
E o melhor de tudo? As Havaianas não são uma marca de luxo. É chinelo. Chinelo de R$ 30,00 que você compra no supermercado, na farmácia, no camelô. É o chinelo que todo mundo usa, inclusive quem está boicotando. Então, na prática, o boicote é: “Vou continuar usando chinelo, mas vou fingir que não é Havaianas, porque sou contra o pé direito.” Que coerência. Que integridade.O que é engraçado é que ninguém fala da verdadeira doutrinação que acontece no Brasil. A doutrinação do ódio, do preconceito, da ignorância. A doutrinação que ensina que o pé direito é sagrado, mas corrupção, violência, racismo e homofobia são normais. A doutrinação que faz gente boa achar que o problema do país é um chinelo que não quer que a gente comece com o pé direito, e não a prisão de jornalistas, a destruição da Amazônia, o genocídio de negros e pobres. Mas claro, é mais fácil atacar um comercial de Havaianas do que enfrentar a realidade.
É mais fácil gritar “ideologia de gênero” do que admitir que o Brasil é um país profundamente machista, homofóbico, racista e transfóbico. É mais fácil boicotar um chinelo do que boicotar o ódio que está dentro de casa, dentro da igreja, dentro da família.O boicote à Havaianas não mostra força moral. Mostra medo. Mostra insegurança. Mostra que, para muita gente, o simples fato de ver um chinelo que não quer que a gente comece com o pé direito é uma ameaça existencial.
Que o pé direito é mais importante do que a miséria, do que a fome, do que a violência urbana. E o mais irônico de tudo? As Havaianas vão continuar vendendo. O Brasil vai continuar usando chinelo. E o boicote vai ser esquecido em duas semanas, como todos os outros boicotes ridículos que já tivemos. Porque, no fundo, todo mundo sabe que o problema não é o chinelo. O problema é a cabeça de quem acha que um chinelo que não quer que a gente comece com o pé direito é o fim do mundo.No fim das contas, o que importa não é o chinelo. O que importa é o que ele representa: um país que ainda tem medo do diferente, do outro, do que não se encaixa no padrão. Um país que prefere boicotar um comercial a enfrentar seus próprios demônios.
Então, se você está boicotando Havaianas porque elas não querem que você comece o ano com o pé direito, parabéns. Você ganhou o prêmio de “maior hipócrita do ano”. Pode continuar usando seu chinelo de marca chinesa, fingindo que é diferente, enquanto o Brasil afunda em ódio, preconceito e ignorância. E, claro, não se esqueça de usar o chinelo com orgulho — afinal, o que importa mesmo é a aparência, não a realidade.

