Em São João del-Rei – MG, a cidade que se orgulha da tradição barroca, o que está em alta agora é outro estilo: o barroco mental, cheio de curvas para justificar o injustificável, como cancelar o show de Maria Gadú e flertar com o cancelamento do show de Alcione porque, vejam só, elas têm posições políticas. Aí não se fala mais em música, cultura ou festa popular, fala-se em purificação ideológica de palco, como se o microfone viesse com teste de fidelidade partidária embutido.
O roteiro é simples e previsível, quase um playback: o vereador Luiz Felipe Maciel, da base do prefeito, vai às redes sociais, acusa Maria Gadú e Alcione de “militância radical em cima do palco” e pede que os shows dos dias 6 e 7 de dezembro, no Largo do São Francisco, sejam cancelados, pois seriam um “erro” da Secretaria de Cultura para o aniversário de 312 anos do município. O pecado mortal das artistas? Gadú ter cantado em ato do MST e entoado palavras de ordem como “Lula livre” e “sem anistia”, Alcione ter criticado Jair Bolsonaro e defendido o povo nordestino; enfim, ousaram ter opinião e não pedir desculpas por ela.
Pressão feita, o “milagre” acontece: o show de Maria Gadú, marcado para 6 de dezembro, é efetivamente cancelado pela prefeitura, com anúncio em redes locais e veículos regionais, enquanto se fala em mudança de programação e em cumprimento de lei municipal “Prata da Casa”, como se de repente o problema fosse apenas priorizar artistas locais, e não a patrulha ideológica que veio antes. É curioso como a tal “lei” só vira prioridade exatamente quando um setor conservador se incomoda com uma cantora que já subiu em palco do MST e não esconde o alinhamento progressista; até ontem, a programação com Gadú e Alcione era divulgada com orgulho oficial, inclusive em posts celebrando as atrações do aniversário da cidade.
Enquanto isso, Alcione segue oficialmente na grade, com show gratuito previsto para o dia 7 de dezembro, mas sob o gostoso clima de ameaça pairando no ar, porque o mesmo vereador que pediu o cancelamento de Gadú também “alertou” contra a presença da maranhense, que ousou postar vídeo rechaçando Bolsonaro em 2019. É a típica chantagem moral travestida de zelo pelo dinheiro público: “não temos nada contra o talento, só contra a militância”, como se exigir neutralidade de artistas pagos com recursos públicos significasse amputar da cultura exatamente aquilo que a torna relevante: posição, crítica, incômodo.
A cereja desse bolo cívico é a comparação “sutil”: o mesmo discurso que ataca Gadú e Alcione elogia artistas como Elba Ramalho, que já se alinhou ao bolsonarismo e chegou a interromper manifestação crítica em show, mas que, na narrativa local, aparece como quase “apolítica”, aceitável, palatável, decorativa. O recado é claro e pedagógico: artista de direita é “opinião”, artista de esquerda é “militância radical”; cultura alinhada ao poder é “tradição”, cultura dissonante é “inadequada para o povo de São João del-Rei”.
No fim, não é apenas um show que cai da programação, é o verniz democrático que escorre pelo ralo enquanto se aplaude censura com cara de gestão responsável. Cancela-se Maria Gadú hoje, tenta-se cercar Alcione amanhã, e assim se ensaia uma cidade em que o palco ideal é aquele em que ninguém pensa alto demais, ninguém canta fora da cartilha e a plateia aprende, bem comportada, que democracia é isso aí: você é livre para cantar, desde que a música agrade a quem manda no som.
E aqui está o toque final de ironia: são os mesmos que bradam aos quatro ventos sobre a importância vital da liberdade de expressão, defendendo-a até com unhas e dentes – desde que essa liberdade seja uma monótona e silenciosa réplica do pensamento deles. Com sorte e muita discrição, você pode até abrir a boca para cantar, só não espere desafinar na ideologia dominante, pois aí o microfone é cortado, a luz se apaga e o “libertador” vira carrasco, numa aula magistral de como amar a liberdade de expressão à distância – mas no grito, censurar quem ousa ter opinião contrária é o verdadeiro hino nacional. Pode mentir sobre a pandemia da Covid, causando o desastre de mais de 700 mil mortes, pode sujar reputações com mentiras espalhadas por canais oficiais, pode defender golpe de estado e a volta da ditadura militar, mas se o seu lado político é à esquerda, bem, aí não pode sequer subverter o roteiro da peça ensaiada por essa trupe do cancelamento.

