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sexta-feira, 26 de setembro de 2025

A banalidade da maldade e o espetáculo da estupidez

O século XX deixou, entre suas heranças, três reflexões que ainda reverberam com força no agora: Dietrich Bonhoeffer, ao refletir sobre a ligação entre estupidez e maldade em tempos sombrios; Hannah Arendt, ao observar a terrível “banalidade do mal” diante da obediência cega e da ausência de reflexão; e Stanley Milgram, que revelou em seus experimentos a disposição inquietante de pessoas comuns em infligir sofrimento apenas porque uma autoridade lhes ordenava. Esses três ecos do passado ressoam de maneira perturbadora quando se observa a paisagem moral e política do presente.

Bonhoeffer, antes de ser assassinado pelo nazismo, avisava que a estupidez era, em muitos casos, mais perigosa do que a própria maldade, porque bloqueia a escuta, corrompe o juízo e fecha os olhos para a realidade. O estúpido não precisa mentir deliberadamente: basta-lhe repetir slogans, entregar-se ao coro, aderir à massa. Arendt, ao analisar Eichmann, mostrou que o mal pode nascer não de monstros explícitos, mas de burocratas incapazes de pensar, obedientes até à medula. Milgram, por sua vez, demonstrou como a maioria das pessoas pode se tornar cúmplice da violência quando sente o amparo da autoridade, ainda que o desconforto moral as corroa em silêncio.

Essas três chaves, quando justapostas, ajudam a decifrar o teatro grotesco que se repete hoje em manifestações carregadas de símbolos patrióticos travestidos de verdades absolutas, em discursos inflamados que fazem de inimigos imaginários a razão de ser da política, em celebrações públicas do ódio travestido de fé, costume e moralidade. Não é preciso nomear personagens ou grupos específicos: basta observar a coreografia previsível em que massas inteiras, mobilizadas por palavras de ordem vazias, tornam-se agentes voluntários de agressão e intolerância. São homens e mulheres que, muitas vezes, acreditam estar lutando pelo bem, mas que, ao renunciarem ao pensamento crítico, se deixam capturar pela estupidez coletiva.

Bonhoeffer diria que não estamos diante simplesmente de indivíduos maus, mas de cérebros paralisados pela repetição, incapazes de enxergar contradições elementares. Arendt veria na cena a repetição da sua advertência: a incapacidade de pensar não gera apenas erros, mas abre o caminho para catástrofes. Milgram, por sua vez, reconheceria nos líderes que mandam obedecer a reprodução do mecanismo pelos quais tantos seres humanos preferem o conforto da submissão à dificuldade da responsabilidade moral.

O alerta que se impõe é o da pulverização desse fenômeno. Ele já não se limita ao plano federal, onde os holofotes se concentram, mas desce aos níveis estaduais e municipais, infiltrando-se no cotidiano, contaminando assembleias legislativas e câmaras de vereadores, até chegar ao coração da vida comunitária. É nesse terreno que frases feitas, aparentemente simples mas mortalmente perigosas, tornam-se instrumentos de manipulação. “Tirando o pão da boca de uma criança” vira justificativa para cortes sociais; “enterrando sonhos” serve de discurso para o desmonte de políticas educacionais; bordões como “bandido bom é bandido morto” ou “direitos humanos para humanos direitos” reduzem dilemas humanos a simplificações cruéis, naturalizando a injustiça e abolindo qualquer reflexo humanista. O ex-parlamentar Sivuca, notório por sua atuação na área da segurança pública, ilustra esse processo: tornou-se propagador contumaz dessa lógica rasa, elevando o preconceito e a truculência ao posto de bandeiras políticas.

Estamos, portanto, diante de um fenômeno que transcende partidos ou governos: o encontro sinistro entre obediência cega, preguiça mental e fé irracional na autoridade. A maldade, hoje, não se manifesta apenas nas violências explícitas, mas também na recusa em pensar, no cultivo organizado da mentira e na disseminação estratégica da estupidez. É um espetáculo onde manchetes viram dogmas, líderes viram oráculos e cidadãos tornam-se marionetes que aplaudem sua própria rendição.

Num tempo em que a memória histórica é tratada como detalhe e a ignorância se disfarça de convicção, recordar Bonhoeffer, Arendt e Milgram é um antídoto necessário. Porque a maldade não surge sozinha: ela precisa da carne mole da estupidez para se enraizar. E, se o presente insiste em nos mostrar o mesmo roteiro, talvez nosso maior desafio seja romper o ciclo dessa encenação sombria, restaurando a coragem de pensar, resistir e, sobretudo, recusar a conivência travestida de virtude.

Manuel Flavio Saiol Pacheco
Manuel Flavio Saiol Pacheco
Doutorando e Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Justiça e Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Especialista em Desenvolvimento Territorial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).. Possui ainda especializações em Direito Tributário, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Docência Jurídica, Docência de Antropologia, Sociologia Política, Ciência Política, Teologia e Cultura e Gestão Pública e Projetos. Graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Advogado, Presidente da Comissão de Segurança Pública da 14º Subseção da OAB/RJ, Servidor Público.

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