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quarta-feira, 30 de julho de 2025

De mãos abanando

Vicente não era um ladrão de respeito, como nenhum é. Digo, dessa forma, que não tinha experiência ou coragem. Por isso, era notável a sua cautela: nunca avançava em um cômodo sem planejar uma rota de fuga. Porém, o que se segue encerra para sempre sua breve carreira de canalha.

Vicente vagava pelas ruas, tentando decidir a casa na qual iria entrar. A lua minguante era a única iluminação naquela noite fria. Os ventos acentuados sussurravam e silenciavam seus passos errados. De repente, deparou-se com sua vítima perfeita: uma casa com muros baixos e uma porta de madeira frágil à primeira vista. O ladrão pulou os muros de pedra, que não tinham mais de um metro, e abriu acesso para um pequeno jardim. Nele rosas, tulipas e jasmins perdiam uma batalha contra as ervas daninhas. “Oh, que pena!” Vicente pensou “Essas flores são tão lindas, deveriam receber melhores cuidados”. Aproximou-se da entrada e deu uma olhada mais a fundo na residência. No primeiro andar, havia a porta de madeira e duas janelas, com grades. No segundo andar, uma sacada com um parapeito ornamentado por balaústres.

— Uma entrada difícil, mas será fácil de fugir se necessário. — sussurrou o ladrão para si mesmo —É claro, se absolutamente necessário, pularei.

Com extremo esmero, inseriu um grampo na fechadura. Após abrir a porta, encontrou uma linda sala de estar. O ladrão ligou sua lanterna para buscar por pratarias e outras coisas que brilhassem aos seus olhos. Havia dois sofás, cobertos por panos de croché, uma poltrona, uma mesa de centro e uma televisão de tubo sobre um raque. Naquele raque, ele notou uma foto de família. O ladrão pegou a moldura. Havia um casal e duas crianças sentados em um dos sofás. O filho mais novo, que devia ter uns 2 anos, escapava dos braços da mãe, a qual usava um vestido branco florido. O filho mais velho tinha entre 10 e 12 anos e vestia uma camisa social azul enquanto sorria ao lado do pai. Vicente perdeu-se no olhar do pai — órbitas distantes da câmera e fixas em um horizonte misterioso. Atrás da moldura, o ladrão encontrou uma carta e pôs-se a ler:

Rio de Janeiro, 8 de Abril de 1996
Caro Alberto,
Eu sei que as coisas não estão muito bem. Você foi mandado embora da fábrica e a Silvana está grávida pela terceira vez. Pelo menos o João já deixou o hospital, ao menos é o que você me disse da última vez que me escreveu.
Eu venho nessa carta para falar de um assunto sério. Eu ainda …

Foi quando um estrondo deu um basta ao silêncio. Vicente ficou paralisado. Ele sabia que o barulho foi causado pela porta batendo contra a parede devido ao vento. No entanto, ele temia que o barulho acordasse o pai. Um homem enorme, de ombros largos e com uma família para proteger contra o franzino Vicente! Ele guardou a carta no bolso, escondeu-se debaixo da escada e esperou alguns instantes. Dada a calmaria, resolveu subir as escadas.

Com as mãos e pés trêmulos, o ladrão demorou para se acalmar de novo. No segundo andar, havia um corredor com duas portas de cada lado. Do lado esquerdo, as duas estavam abertas. Cuidadosamente, ele entrou na primeira porta. Era um quarto de bebê. Acima de um berço azul claro, encontrava-se um móbile com a lua, o sol e os planetas. Brinquedos, roupas pequenas e uma mamadeira: tudo naquele quarto cheirava a bebê, só não havia bebê nenhum.

Vicente sentiu, subitamente, como se alguém soubesse que ele estava ali, como se antecipasse todos os seus passos. Um medo repentino tomou conta de seu corpo. Saiu do quarto e sentiu um frio arrebatador. A segunda porta estava agora completamente aberta. Foi quando um pensamento lhe veio à mente: alguém estava acordado. Então , desesperado, Vicente passou pela porta e foi até a sacada. Ofegante, o ladrão passou a ouvir além do silêncio de uma noite vazia: risos, choro, uma panela de pressão, os fogos de ano novo e passos cada vez mais pesados. ”Não tenho outra escolha” pensou Vicente antes de pular.

A queda não era grande, mas Vicente se machucou um pouco. Ele correu para longe da casa, para longe do remorso e para longe do medo. Todavia, não foi muito longe. Deitou exausto na calçada e prometeu nunca mais roubar. Depois, pegou a carta e leu as palavras que lhe marcariam até o fim de sua vida:

Eu venho nessa carta para falar de um assunto muito sério. Eu ainda posso lhe hospedar aqui no Rio até você se recuperar. Venda essa casa e venham para cá logo. Sei bem quantas memórias vocês tem aí em Vitória, mas família é para essas horas e eu estou aqui para te ajudar nesse momento.
Abraços
Do seu irmão, Luis

Leonardo Resende Costa
Leonardo Resende Costa
Estudante, desocupado, cronista e Redator da Halo Project Brasil. Sobretudo, um amador.

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